segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Relatos da manifestação da Inteligência Criativa Amorosa

17 de julho

Após escalarmos a íngreme ladeira arborizada de uma montanha, fomos sentar em um banco. Inesperadamente, aquela sagrada benção nos atingiu; embora nada disséssemos, o companheiro também a sentiu. Assim como muitas vezes inundou o quarto, agora, parecia cobrir toda a encosta e o vale que se estendia para além das montanhas. Ela estava em toda parte. Era como se o espaço não existisse; o que se encontrava distante, o vasto desfiladeiro, os picos cobertos de neve e a pessoa sentada no banco logo desapareceram. Não havia um, dois, ou muitos, mas apenas aquela imensidão. O cérebro já não reagia, era apenas um instrumento de observação; via não como um cérebro pertencente a determinada pessoa, mas como um cérebro não condicionado pelos limites do tempo e do espaço, como a essência de todos os cérebros.

A noite estava calma e o processo havia diminuído de intensidade. Ao despertarmos pela manhã, aquela experiência teria durado talvez um minuto, um hora, ou uma eternidade. Experiência transmitida não é uma verdadeira experiência; aquilo que tem continuidade deixa de ser experiência. Ao acordarmos, a imensa chama da atenção, da plena consciência e da criação, ardia furiosamente bem no íntimo, na imensurável profundeza da mente total. A palavra não é a coisa; o símbolo não é o real. O fogo que arde na superfície da vida passa, apaga-se, deixando atrás de sai tristeza, cinzas e lembranças. A tal fogo dá-se o nome de vida, mas não é vida. Isto é decadência. O destruidor fogo da criação é que constitui a vida. Nele não há começo nem fim, não há o ontem nem o amanhã. É uma realidade, e nenhuma atividade superficial jamais o descobrirá. O cérebro deve morrer para que surja esta vida.

19 de julho

Ontem à tarde, o processo tornou-se mais doloroso. Ao anoitecer, a sagrada benção surgiu inundando o quarto. A noite foi calma, embora a pressão e a tensão estivessem presentes, como o sol encoberto pelas nuvens; de manhã bem cedo, o processo recomeçou.

Parece que acordamos apenas para registrar dada experiência; isto tem acontecido frequentemente, desde o ano passado. Despertamos esta manhã com um vivo sentimento de alegria; ele surgiu-nos ao acordarmos; não era uma coisa do passado, mas que estava acontecendo. Ela tinha existência própria, não era provocada pela própria pessoa; aquela avassaladora energia penetrava e fluía por todo o organismo. O cérebro não tomava parte naquilo, mas, apenas registrava, não como lembrança, porém, como um fato real que estivesse ocorrendo. Por trás deste êxtase parecia haver imensa força e vitalidade; não se tratava de um sentimento, nem de uma sensação ou emoção, pois era tão sólido e real como aquela torrente que jorrava da montanha, ou o pinheiro solitário, na encosta verdejante. Toda sensação e emoção provêm do cérebro, mas não o amor, e daí a presença daquele êxtase. É com a maior dificuldade que o cérebro pode evocá-lo.

De manhã cedo sentimos uma benção que parecia cobrir a terra e encher o quarto. Com ela, uma consumidora tranquilidade, um total e envolvente silêncio.

28 de julho

Caminhávamos, ontem, por nossa estrada preferida, paralela ao ruidoso regato, no estreito vale de pinheiros escuros, campos floridos, e, ao longe, a imponente montanha, coberta de neve, e uma queda d’água. Tudo era enlevo, paz, frescor. Ali, enquanto andávamos, surgiu aquela benção sagrada, algo que quase podíamos tocar, e, interiormente, passávamos por transformações. O encanto e a beleza daquela noite singular não pertencia a este mundo. O imensurável sobreveio, propiciando um clima de paz.

Esta manhã, ao despertarmos, constatamos que o processo se intensificava; vinha por detrás da cabeça, avançando como uma flecha, com aquele som peculiar quando investe cortando o ar; era uma força, um movimento sem direção. Uma atmosfera de imensa firmeza e inacessível “dignidade” se fazia sentir. Junto com a austeridade que o pensamento não pode conceber, sentíamos uma pureza de infinita suavidade. Mas, isto são palavras, meras palavras, que jamais descreveram o real. O símbolo nunca é a realidade e em si mesmo nada exprime.

O processo perdurou toda a manhã, e uma taça, sem dimensões, parecia repleta, a ponto de transbordar.       

Krishnamurti – Diário de Krishnamurti – Cultrix

Não apague a chama fecunda do descontentamento

Já se sentaram em completo silêncio sem se mexer? Tentem, sentem-se com as costas retas e observem o que a mente faz. Não tentem controlá-la, não digam que ela não deve pular de um pensamento para outro, de um interesse para outro, mas somente conscientizem-se de como ela vagueia. Não façam nada a respeito, mas observem como se estivessem na margem de um rio olhando a água passar. Nela há muita coisa — peixes, folhas, animais mortos —, mas está sempre viva, em movimento, e a mente é idêntica. É uma inquietação, incessante, pulando de um ponto para outro como uma borboleta.
 
Quando vocês ouvem uma música, como agem? Podemos gostar da pessoa que está cantando, ela pode ter um rosto bonito, e vocês podem acompanhar o significado da letra; porém, por trás de tudo isso, quando ouvem a música, estão ouvindo os tons e o silêncio entre eles, não é? Da mesma maneira, sentem-se em silêncio sem ficar irrequietos, sem mover as mãos ou até mesmo os dedos dos pés, e simplesmente observem a mente. É divertido. Se tentarem como algo divertido, verão que a mente começa a se estabilizar sem que você se esforce para controlá-la. Não existe um censor, juiz ou avaliador, e quando a mente fica assim tranquila por si só, espontaneamente estabilizada, descobriremos o que é ser alegre. Sabem o que é alegria? É rir, se deliciar com algo ou por algo, provar da satisfação de viver, sorrir, olhar direto no rosto do outro sem qualquer sensação de medo.
 
Já olharam realmente no rosto de alguém? Olharam o rosto do professor, dos pais, do superior, do empregado, do pobre trabalhador braçal e viram o que acontece? A maioria de nós teme olhar diretamente no rosto do outro, e os outros não desejam que nós os encaremos desta maneira porque também estão assustados. Ninguém deseja se revelar; Estamos todos em guarda, escondendo-nos por trás de várias camadas de angústia, sofrimento, anseios, esperança, e são bem poucos os que podem olhar você diretamente no rosto e sorrir. E é muito importante sorrir, ser feliz, porque sem uma canção no coração a vida se torna insípida. Pode-se ir de um templo a outro, trocar de marido ou de esposa, ou encontrar um novo professor ou guru, mas se não houver alegria interna a vida terá pouco significado. E descobrir a satisfação interna não é fácil, porque a maioria de nós está apenas superficialmente descontente.
 
Sabem o que significa estar descontente? É muito difícil compreender esse sentimento porque a maioria de nós canaliza esse sentimento em uma certa direção, ocultando-o. A única preocupação que temos é nos estabelecermos em um posição segura, com interesses e prestígio bem-estabelecidos, para não sermos perturbados. Acontece nos lares e também nas escolas. Os professores não querem ser perturbados e por isso seguem a velha rotina. Porque, no momento que alguém se sentir realmente descontente e começar a inquirir, questionar, haverá distúrbios. E somente por intermédio do verdadeiro descontentamento é que surge a iniciativa.
 
Sabem o que é iniciativa? Vocês tem iniciativa quando iniciam ou começam algo sem serem acionados. Não é preciso algo muito grande ou extraordinário — isso pode surgir mais tarde; mas existe a centelha da iniciativa quando você planta uma árvore sem ser solicitado, quando é espontaneamente gentil, quando sorri para um homem que está carregando algo pesado, quando tira uma pedra do caminho ou afaga um animal na rua. Esse é um pequeno início de uma tremenda iniciativa que vocês devem ter se desejam conhecer esta cosia maravilhosa chamada criatividade. Ela possuí suas raízes na iniciativa, que acontece somente quando existe um profundo descontentamento.
 
Não tenham receio do descontentamento, podem nutri-lo até que a centelha se torne uma chaga e vocês permaneçam descontentes com tudo — os empregos, as famílias, a busca tradicional por dinheiro, posição, poder —, para que realmente comecem a pensar, descobrir. E quando estiverem mais velhos descobrirão que manter o espírito de descontentamento é muito difícil. Terão filhos para cuidar e deverão considerar as exigências em seus empregos, a opinião dos vizinhos, da sociedade fechando-se sobre vocês, e logo começarão a perder a chama do descontentamento. Quando se sentem descontentes, vocês ligam o rádio, vão a um guru, fazem rituais, vão ao clube, bebem, saem em busca de mulheres — qualquer coisa para encobrir a chama. Mas, observem, sem a chama do descontentamento, nunca terão iniciativa, que é o início da criatividade. Para descobrir o que é verdadeiro vocês precisam se revoltar contra a ordem estabelecida, e quanto mais dinheiro seus pais tiverem e mais seguros os professores estiverem em seus empregos, menos eles desejarão se revoltar.
 
A criatividade não é apenas uma questão de pintar quadros ou escrever poemas — o que também é bom, mas de pouca valia. O importante é estar totalmente descontente, pois esse é o início da iniciativa, que se torna criatividade quando amadurece. E esse é o único caminho para descobrir o que é verdadeiro, o que é Deus, porque o estado criativo é Deus.
 
Por isso é preciso haver o total descontentamento — mas com alegria. Compreenderam? É preciso estar totalmente descontente, mas não para resmungar, e sim agir com alegria, leveza, com amor. A maioria das pessoas que está descontente é terrivelmente aborrecida; estão sempre se queixando que algo não está certo, ou desejando estar numa posição melhor, ou buscando circunstâncias diferentes, porque seu descontentamento é bem superficial. E aqueles que não estão descontentes já estão mortos.
 
Se puderem se rebelar ainda jovens, e enquanto amadurecerem mantiverem o descontentamento vivo com a energia da satisfação e do grande afeto, então a chama terá um significado extraordinário, porque ela construirá, criará, montará coisas novas. Para isso é preciso receber a educação correta, que não é do tipo que apenas os prepara para conseguir um emprego, ou subir a ladeira do sucesso, mas a que os ajuda a pensar e ceder espaço — não o de um quarto maior, ou um telhado mais elevado, mas para a mente crescer e não ficar limitada por qualquer crença ou medo.

(...) O que acontece quando não fazemos esforço para fugir? Vivemos com essa solidão, esse vazio, e, ao aceitarmos isso, vemos surgir um estado criativo, que não tem nava a ver com luta, com esforço. Existe esforço apenas quando tentamos evitar a solidão interior, mas quando a examinamos, quando aceitamos o que é, sem tentar evitá-lo, alcançamos um estado de ser em que toda a luta cessou. Esse estado de ser é criatividade, e não resulta de esforço.

Quando compreendemos o que é, ou seja, o vazio, a insuficiência interior, e vivemos com essa insuficiência e a compreendemos completamente, encontramos a realidade criativa — a inteligência criativa —, que, por si só, traz felicidade. 

Assim, a ação, como a conhecemos na verdade é reação, uma transformação incessante, e isso é negação do que é. Mas quando há uma conscientização do vazio, sem condenação ou justificativa, com a compreensão do que é, então, sim, a ação é criatividade. Você compreenderá isso se estiver cônscio de si mesmo, quando em ação. Observe-se quando estiver agindo, veja a si mesmo não apenas externamente, mas  procure perceber também o movimento de seus pensamentos e sentimentos. Quando perceber esse movimento, verá que o processo do pensamento, que também é de sentimento e ação, baseia-se em uma ideia de transformação. Essa ideia surge apenas quando há um senso de insegurança, e esse senso vem quando se está cônscio do vazio interior. Se você estiver cônscio desse processo de pensamento e sentimento, verá que há uma batalha em constante andamento, um esforço para mudar, para altera o que é. Esse é o esforço de transformação, e transformação é evitar diretamente o que é. Por meio do autoconhecimento, da constante conscientização de si mesmo, você descobrirá que a luta pela transformação leva à dor, ao sofrimento e à ignorância. Só quando estiver cônscio de sua insuficiência interior e viver com ela, sem fugir, aceitando-a integralmente, é que você descobrirá uma maravilhosa tranquilidade, uma tranquilidade que não é fabricada, não construída, mas que vem com a compreensão do que é. E é só nesse estado de tranquilidade que pode haver existência criativa. 

Krishnamurti

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

A importância de um profundo estado de “fome psicológica”

Liberdade significa esvaziar a mente do conhecido. Não sei se já alguma vez tentaste, vós mesmo. O relevante é libertarmos a mente do conhecido, ou melhor, que a mente se liberte do conhecido. Isso não significa que a mente deva libertar-se do conhecido "factual", pois em certo grau necessitamos desse conhecimento. É claro que não deveis libertar-vos do conhecimento do lugar onde morais, etc. Mas a mente pode libertar-se do seu fundo de tradição, de experiências acumuladas, e dos vários impulsos conscientes e inconscientes que representam reações daquele fundo; e ficar completamente livre desse fundo significa rejeitar, colocar de lado, morrer para o conhecido. Se assim fizerdes, descobrireis por vós mesmo quanto é realmente significativa a liberdade.

Falo a respeito de uma liberdade interior, total, em que não há dependência psicológica, nem apego de espécie alguma. Enquanto há apego, não há liberdade, porque o apego implica sentimento de íntima solidão, vazio interior, o qual exige um estado de relação exterior em que amparar-se. A mente livre não é apegada, embora possa ter relações. Mas não pode nascer a liberdade, se não há aquele "estado de aprender" que traz consigo uma profunda disciplina interior, não baseada em ideias nem em nenhum padrão "conceitual". Quando a mente está a libertar-se constantemente, pelo morrer para o conhecido momento por momento, daí provem uma disciplina espontânea, uma austeridade nascida da compreensão. A verdadeira austeridade é uma coisa maravilhosa; não é a disciplina seca, e sem nenhum valor, da renúncia destrutiva, que em geral imaginamos.

(...) Talvez já tenhais conhecido a experiência de vos sentirdes subitamente isolado de todas as coisas, de não estardes em relação com coisa alguma. Podeis achar-vos no meio de uma multidão, ou no círculo da família, ou numa reunião social, ou podeis estar passando a sós pela margem de um rio, e subitamente vos vem um sentimento de completo isolamento. Esse sentimento de isolamento é essencialmente um "estado de medo", e ele sempre existe emboscado no segundo plano da mente. Desse modo procuramos fugir constantemente, fazendo coisas de todo gênero: lendo um livro, ouvindo o rádio, vendo televisão, bebendo, procurando mulheres, voltando-nos à busca de Deus, etc. Ele é isolamento, e de nosso medo ao isolamento é que decorrem todas as nossas ações e reações. "Isolamento" é coisa completamente diferente de "solidão".

A mente que se vê isolada, e com medo, está à mercê de inumeráveis influências; como um pedaço de barro, ela é maleável, pode ser modelada, ser forçada a ajustar-se a um molde. Mas, solidão é a completa libertação mental de todas as influências: influência de esposa, do marido, da tradição, da igreja, do Estado. Ela significa estar libertado da influência do que ledes, e da influência de vossas próprias exigências inconscientes. Por outras palavras, solidão é o estado em que se está completamente livre do "conhecido". É o "estado de aprender" que vem quando a mente compreende o processo total da vida; e com ela vem uma disciplina que não é a disciplina da igreja, ou do exército, ou do especialista, ou do atleta, ou do homem que cultiva o saber. É a disciplina nascida de um profundo senso de humildade; e não pode haver humildade, se a mente não está completamente .

(...) Na maioria, buscamos Deus, e nosso Deus é uma mera questão de crença. A palavra God (Deus) escrita às avessas é dog (cachorro), e esta última serve tão bem como a primeira para designar aquilo que chamamos Deus. Mas, fomos educados, desde a meninice, para aceitar aquela palavra; e a religião organizada, com sua milenar propaganda, condiciona a mente para crer naquilo que supõe que a palavra representa. A aceitamos tal crença com tanta facilidade, exatamente como no mundo comunista aceitam a crença de que não há Deus, porque nessa crença foram eles educados. Esse é outro gênero de propaganda. O crente e o não crente são iguais, porquanto ambos são escravos da propaganda.

Ora, para descobrirdes se há ou não há Deus, deveis destruir, em vós mesmos, tudo o que seja produto da propaganda. O que hoje chamamos "religião" foi organizado, formado durante séculos pelo homem, com seu medo, sua avidez, sua ambição, sua esperança e desespero. E para descobrir se há ou não há Deus, a mente deve destruir totalmente, sem nenhum motivo, todas as acumulações do passado; deve eliminar radicalmente todas as crenças e descrenças e desistir completamente de buscar. Deve a mente estar vazia do "conhecido", vazia do Salvador, vazia de todos os deuses manufaturados pelo pensamento e esculpidos na madeira ou na pedra. Só quando livre do conhecido, pode a mente encontrar-se num estado de absoluta tranquilidade, não provocada por uma certa maneira de respirar, por exercícios, artifícios, drogas. E precisamos chegar até esse ponto — que na realidade não está longe, pois não há distância nenhuma para percorrer. Mas, para se poder abolir a distância, o tempo deve cessar; e só pode cessar o tempo, quando há o conhecimento de nós mesmos, como realmente somos, fato por fato. Nesta extraordinária liberdade, que começa com o autoconhecimento, há um movimento — um movimento que é imensurável, além de todos os conceitos. Esse movimento é criação; e quando a mente chegar a esse movimento, descobrirá, por si própria, que o amor, a morte a criação são a mesma coisa.

(...) Quando um homem está a morrer de fome, que bem lhe faz descrevermos para ele um prato suculento ou uma iguaria de delicado sabor? O que ele quer é comida. Teorias e descrições nenhuma significação tem para o homem que tem fome de descobrir por si mesmo o que é verdadeiro. Mas, infelizmente, a maioria de nós não tem fome desse sentido. Estamos bem nutridos, psicologicamente, porque estamos repletos de nossas próprias experiências, e encontramos abrigo seguro no dogma, na crença. Sentimo-nos em segurança, porque pertencemos a este ou àquele grupo, a esta ou àquela Igreja. E quando nos vem um sentimento de descontentamento — o que muito raramente acontece — logo tratamos de sufocá-lo, procurando alguma coisa que nos dê satisfação imediata. O que tem verdadeira importância é estarmos, no plano psicológico, terrivelmente famintos, e permanecermos nesse estado, sem nos tornarmos insanos ou neuróticos. A questão não é de como aplacar aquela fome, porque no momento em que o fazeis estais perdido. Podeis aplacá-la muito facilmente, com palavras, com teorias, com livros, com Igrejas, com... Oh!... com qualquer coisa. Mas, se permaneceis nesse estado de profunda "fome psicológica", ela é então como uma chama viva que destruirá todas as coisas falsas até nada mais restar senão cinzas; e como resultado desse vazio, algo real pode verificar-se.

Krishnamurti — O homem e seus desejos em conflitos - ICK

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Liberte-se de toda autoridade psicológica

Nesta tarde, desejo falar sobre a natureza do conflito e sobre a possibilidade de nos libertarmos totalmente de qualquer espécie de conflito. Por conflito, entendo a batalha perpétua, a inquietação, a ansiedade, desespero, angústia, os temores, os atritos, a luta existente interior e exteriormente, o sentimento de insegurança, a busca, pelos que se sentem inseguros, de um estado isento de perturbações, um estado de permanência. E temos também o conflito entre o consciente e o inconsciente, o conflito dos diferentes desejos, o conflito da ambição, o conflito do preenchimento, o conflito da frustração, o conflito que se torna maior quando temos o desejo de descobrir o verdadeiro. Porque, vivendo neste mundo e procurando ajustar-nos ao mundo e à ideia que estabelecemos como padrão, como ideal, estamos tornando maior o conflito.

(...) Em geral, buscamos uma espécie de segurança, porque nossa vida é um conflito infindável, desde o momento de nascermos até o momento de morrermos. A fastidiosa monotonia da vida e a ansiedade da vida; o desespero da existência; desejar ser amado, e não ser amado; a superficialidade, a vulgaridade, a agitação da existência diária — eis a nossa vida. Nessa vida, há perigo e apreensão; nada é certo; há sempre a incerteza do amanhã. Assim, consciente ou inconscientemente, andamos numa perene busca de segurança, desejando encontrar um estado permanente, primeiro no plano psicológico e, depois, no exterior; sempre, em primeiro lugar, o plano psicológico, e não o exterior. Desejais um estado permanente em que não sejais perturbado por coisa alguma, por nenhum medo, nenhuma ansiedade, nenhum sentimento de incerteza, nenhum sentimento de culpa. É o que deseja a maioria de nós. É o que busca a maioria de nós, tanto exterior como interiormente.

Exteriormente, desejamos ter ótimos empregos; somos educados, tecnologicamente, para funcionarmos mecanicamente num certo plano burocrático ou outro qualquer. E interiormente ansiamos a paz, o sentimento de certeza, de permanência. Em todas as nossas ações, quer estejamos agindo correta, quer incorretamente, queremos estar em segurança. Queremos que nos seja dito: isto é certo, isto é errado, não façais isto, fazei aquilo. Desejamos seguir um padrão, porque esta é a maneira mais fácil de viver — quer se trate de padrão estabelecido por vós mesmo, quer de padrão estabelecido por outro, pela sociedade, pelo guru ou por vossos próprios ideais e impressões. Existe, pois, essa constante exigência de segurança exterior bem como de segurança interior. A segurança interior se torna muito mais complicada, quando existe a autoridade de uma ideia.

Por ideia, entendemos o ideal, o padrão, o exemplo, a fórmula, o herói. É essa a permanência pela qual vivemos lutando. Por essa razão, há sempre uma distância entre o que é e o que deveria ser; e por essa razão, existe conflito. Quando a mente está em busca de segurança, necessitamos da autoridade — seja a autoridade da sociedade, da lei, seja a autoridade estabelecida na forma de um ideal ou de uma pessoa que irá nos dizer "o que se deve fazer" e "o que não se deve fazer". E, por derradeiro, buscamos a perfeita segurança em Deus. Eis o padrão que estamos seguindo há século e séculos.

O homem existe como homem, segundo se descobriu, há perto de dois milhões de anos. E há pinturas e outras coisas que nos indicam que o homem sempre viveu nesta constante apreensão; é uma corrente em cuja superfície o homem vem flutuando, sempre buscando, buscando e, em virtude dessa busca, estabelecendo a autoridade de um livro, de uma pessoa, de uma ideia. E isso ele vem fazendo conscientemente.

(...) O que realmente mais vos interessa é isto: exteriormente, segurança, dinheiro, posição, poder, conforto; e, interiormente, um inalterável estado livre de todas as ansiedades, e problemas, de toda ideia de perigo, iminente ou remoto. Assim é a nossa vida. Esse é o padrão de existência que aceitamos sem discutir. Quando nos vemos muito perturbados, procuramos escapar-nos, buscando o templo ou outras formas de fuga. Nunca questionamos, nunca investigamos em nós mesmos se fato existe segurança, no plano consciente ou no inconsciente. E vamos agora questionar isso. Podereis não gostar de fazê-lo, e oferecer resistência, pois não estamos acostumados a enfrentar as coisas, não estamos acostumados a olhar-nos assim como somos. Preferimos "ver" coisas inexistentes, ou imaginar coisas que deveriam existir. Mas agora vamos olhar o que na realidade existeo que é.

Em primeiro lugar, há segurança interior, nas relações, em nossas afeições, em nossos modos de pensar? Existe aquela realidade final a que todo homem aspira, em que deposita suas esperanças, sua fé? Porque, no mesmo instante em que desejais segurança, inventais um deus, uma ideia, um ideal que vos dará o sentimento de segurança; mas isso pode não ter realidade nenhuma, ser mera ideia, reação, uma forma de resistência ao fato óbvio da insegurança. Por conseguinte, é necessário investigar essa questão sobre se existe alguma segurança, em qualquer nível que seja de nossa vida. Investigá-lo, primeiro, no plano interior: porque, se não houver segurança interiormente, nossa relações com o mundo serão de todo diferentes; não mais nos identificaremos com nenhum grupo, nenhuma nação, nenhuma família mesmo.

Por conseguinte, cumpre-nos em primeiro lugar investigar a questão de se existe permanência, se existe um "estado de segurança". Isso significa que devemos, vós e eu, estar dispostos a investigar-nos, com agrado, com facilidade, sem autoridade, tanto exterior como interior: a autoridade da sociedade, ou a autoridade que estabelecemos para nós mesmo mediante a experiência, ou a autoridade que a tradição nos impôs. Somos educados para obedecer, porque na obediência encontramos segurança. E, para poder descobrir se existe verdadeiramente alguma segurança, a pessoa deve estar completamente livre de toda espécie de autoridade. Muito importa compreender isso, porque todas as religiões sustentam que existe uma entidade espiritual, permanente, chamada "alma", "Atman", ou o nome que preferirdes. E aceitamos tal coisa à força de propaganda, de condicionamento, impelidos por nossos temores, nossas exigências de segurança. Aceitamo-la como uma realidade viva, confortante. E há todo um mundo que diz: Tal coisa não existe, é mera questão de crença, sem validade nenhuma. É o mundo comunista, que chamais ateísta, ímpio — como se fosseis muito pios, só pelo fato de terdes uma crença!

Assim, o homem que deseja investigar cabalmente essa questão da segurança, deve estar completamente livre de todas as formas de autoridade; não falo da autoridade da lei, da autoridade do Estado, porém da autoridade que a mente busca ou estabelece num livro, numa ideia, numa experiência, na vida. Tende a bondade de ir-me seguindo, consciente ou inconscientemente. Só a mente que está livre da autoridade, pode começar a investigar esse imenso problema da segurança. De outro modo, nem vós nem eu podemos estar em comunhão, e eu preciso dizer-vos que, psicologicamente, não existe segurança.

Se procurais a segurança em Deus, trata-se de uma invenção vossa. Estais projetando vosso desejo num símbolo que chamais "Deus", sem validade alguma. Precisais, pois, estar livre da autoridade, neste sentido. A mente busca a autoridade, estabelece a autoridade num ideal, numa fórmula, numa pessoa, numa igreja, numa certa crença, e trata de ajustar-se e de obedecer. Disso ela precisa estar livre, não só consciente mas também — mais difícil ainda — inconscientemente. A maioria das chamadas "pessoas cultas" não creem em Deus, porque não consideram muito importante isso; têm ótimos empregos ou regular fortuna, e a crença em Deus é uma simples ideia antiquada. Portanto, atiram-na pela janela e vão continuando à sua maneira. Mas, o investigar o inconsciente e livrar-se do impulso inconsciente a buscar a autoridade é muito mais dificultoso.

(...) Encontramos também muita segurança, psicologicamente, emocionalmente, na identificação com uma ideia, com uma raça, uma comunidade, um dado movimento. Isto é, ligamo-nos a uma certa causa, a um certo partido político, a uma certa maneira de pensar, a certos costumes, hábitos, rituais, tais como o hinduísta, o parsi, o cristão, o muçulmano, etc. Ligamo-nos a uma dada forma de existência, uma dada maneira de pensar; identificamo-nos com um grupo, uma comunidade, uma dada classe ou ideia. Essa identificação com a nação, com a família, com o grupo, a comunidade, confere-nos também uma certa ideia de segurança. Sentis-vos muito mais seguros quando dizeis "sou hindu", ou "sou inglês", ou "sou alemão", etc. Essa identificação nos proporciona segurança. Disso também é necessário estar-se consciente.

Assim, quando fazeis a vós mesmo a pergunta sobre se há ou não segurança, o problema se torna extremamente complexo se não compreendeis diretamente a questão, se não lhe conheceis todos os aspectos colaterais. Porque é o desejo de segurança — quando provavelmente nenhuma segurança existe — que gera o conflito. Se, psicologicamente, se percebe a verdade de que não existe segurança de espécie alguma, em nenhuma forma, em nenhum nível, já não há conflito. Tendes então o poder que a vida vos confere; sois ativo, criador, vulcânico em vossa ação, "explosivo" em vossas ideias; a nada estais preso. Estais vivo! E a mente que se acha em conflito não pode, evidentemente, viver na claridade, com infinito sentimento de afeição e compaixão. Para amar, necessita-se de uma mente extremamente sensível. Mas, não podeis ser sensível, se estais perpetuamente com medo, perpetuamente ansioso, na insegurança e, por conseguinte, em busca de segurança. É, obviamente, a mente que se acha em conflito está a gastar-se, como qualquer máquina sujeita a atrito; torna-se embotada, estúpida, entediada.

Assim, pois, em primeiro lugar: existe segurança? Vós é que tendes de descobri-lo, não eu. Eu digo que, psicologicamente, não há segurança de espécie alguma, em nenhum nível, em nenhuma profundidade. Mas isso não é para vós uma realidade. Se o repetis, dizeis uma mentira, porquanto isso não é verdadeiro para vós. Portanto, deveis descobrí-lo, já que se trata de um problema urgente, pois o mundo está mergulhado num caos, se acha em aterradoras condições de desespero, violência, brutalidade. Dizendo "o mundo", refiro-me ao mundo em que viveis — não à Rússia, à China ou à Inglaterra; refiro-me ao mundo que vos cerca — a família, as pessoas com quem tendes contato. Esse é o vosso mundo. Nesse mundo, se observardes profundamente, encontrareis imenso desespero, ansiedade, degeneração, imitação constante. E, para compreender a vida em toda a sua vastidão, em toda a sua beleza e profundidade — não uma profundidade imaginária, uma beleza imaginária, porém a verdadeira, palpitante, vital e pujante beleza da vida, da existência, do viver — deve vossa mente achar-se, toda inteira, em um estado no qual não subsista uma só arranhadura de conflito. Tendes, pois, de descobrir por vós mesmos, como agora estais fazendo. Se pensais que interiormente há segurança, ficareis vivendo num perpétuo estado de conflito. Ficareis vivendo num perpétuo estado de imitação, de obediência, de ajustamento e, por conseguinte, jamais sereis livre. E vossa mente deve estar completamente livre; do contrário não pode viver, não pode compreender. Se a mente não está livre, não pode ver a beleza de uma árvore ou a formosura de uma nuvem, ou a beleza de um sorriso, num rosto.

Krishnamurti —O Despertar da Sensibilidade

domingo, 17 de fevereiro de 2013

Por que preciso ter uma crise para aprender a lidar com o medo?

P: Você disse, Krishnaji, que a inteligência é a maior segurança para se enfrentar o medo. O problema é: numa crise, quando o medo inconsciente toma conta de você, onde é que há lugar para a inteligência? A inteligência requer a negação do mal que aparece no caminho. Ela requer que se ouça, que se veja e que se observe. Mas quando todo o ser está tomado por um medo incontrolável, por um medo que tem uma causa, mas uma causa que não é imediatamente perceptível, nessas circunstâncias, onde há lugar para a inteligência? Como lidar com os medo primitivos, arquetípicos, que estão na verdadeira base da psique humana? Um desses medos é o da destruição do eu, o medo de não existir.

K: O que é que estamos examinando juntos?

P: Como se deve lidar com o medo? O senhor ainda não respondeu essa questão. O senhor falou da inteligência como sendo o fator de maior segurança. Tudo bem: mas quando o medo domina, onde está a inteligência?

K: Você está dizendo que, no momento de uma grande onda de medo, a inteligência desaparece. E como se pode lidar com essa onda de medo quando isso acontece? É essa pergunta?

S: Vemos o medo como se fosse os ramos de uma árvore. Mas nós lidamos com esses medos, um a um, e não há liberdade quando se tem medo. Haverá algum modo de ver o medo sem os ramos?

K: K disse: "Vemos as folhas, os ramos, ou chegamos à verdadeira raiz do medo?"

S: Podemos chegar à raiz de cada ramo do medo?

K: vamos descobrir.

P: podemos chegar a ver o todo através de um medo.

K: Eu entendo. Você está dizendo que há medos conscientes e medos inconscientes, e que os medos inconscientes se tornam extraordinariamente fortes em certos momentos e, nesses momentos, a inteligência não está atuando. Como se pode lidar com essas ondas de medo incontrolável? É isso?

P: Esses medos parecem assumir uma forma material. É uma coisa física que domina você.

K: perturba-o neurológica e biologicamente. Vamos examinar melhor! O medo existe, conscientemente ou em profundidade, quando há um sentimento de solidão, quando há um sentimento de abandono total por parte dos outros, um sentimento de isolamento completo, uma sensação de que não existimos, um sentimento de desamparo total. E, nesses momentos, quando o medo profundo surge, obviamente a inteligência não existe e nasce um medo incontrolável e indesejável.

P: Podemos achar que enfrentamos os medos que conhecemos e, inconscientemente, continuar presos a eles.

K: isso é o que estamos dizendo. Vamos falar sobre isso. Podemos lidar com os medos físicos, que são conscientes. Os filamentos da inteligência podem trabalhar com eles.

P: Você pode até mesmo permitir que esses medos floresçam.

K: E, então, nesse verdadeiro florescimento, há inteligência. Agora, como você lida com o outro medo? Por que o inconsciente — usaremos a palavra "inconsciente", por enquanto — retém esses medos? Ou o inconsciente os acolhe? Ele os retém, eles existem nas profundezas bem conhecidas do inconsciente; ou é uma coisa que o inconsciente adquire do ambiente? Além disso, porque o inconsciente retém os medos? Serão eles parte inerente do inconsciente, da história racial, tradicional do homem? Eles fazem parte da herança genética? Como você lida com o problema?

P: podemos discutir o segundo aspecto, que é o medo que nasce do meio ambiente.

K: Antes de tudo, lidemos com o primeiro. Por que, de algum modo, o inconsciente os retém? Por que consideramos as camadas mais profundas da consciência como o depósito, o resíduo do medo? Elas são impostas pela cultura em que vivemos? Pela mente consciente que, não sendo capaz de lidar com o medo, impele-o para baixo e, por isso, o faz permanecer no nível do inconsciente? Ou é a mente que, com todo o seu conteúdo, não resolveu seus problemas e está assustada por não ser capaz de resolvê-los? Quero descobrir qual é a importância do inconsciente. Quando vocês disseram que essas ondas de medo vêm, digo que elas sempre estão lá, porém, numa crise, você se torna consciente delas.

S: Elas existem na consciência. Por que o senhor diz que elas estão no inconsciente?

K: Antes de tudo, a consciência é constituída pelo seu conteúdo. Sem o seu conteúdo a consciência não existe. Um de seus conteúdos é esse medo básico, e a mente consciente nunca tenta resolvê-lo; ele existe, mas a mente nunca diz: "Eu tenho que lidar com o medo". Nos momentos de crise, essa parte da consciência é despertada e se apavora. Mas o medo sempre está lá.

P: Eu não acho que seja tão simples. O medo não é uma parte da herança cultural do homem?

K: O medo sempre existe. Faz parte da herança cultural? Ou é possível que alguém nasça num país, numa cultura que não aceita o medo?

P: Não existe essa cultura.

K: É óbvio que não existe. E, portanto, estou me perguntando: o medo faz parte da cultura ou é inerente ao homem? O medo é uma sensação de não ser, tal como existe no animal, tal como existe em toda coisa vivente; o medo de ser destruído.

P: Trata-se do instinto de autopreservação que toma a forma de medo.

K: Será que toda a estrutura das células está com medo de não ser? Esse medo existe em todas as coisas vivas. Mesmo uma formiguinha tem medo de não existir. Vemos que o medo existe e faz parte da existência humana, e que qualquer um se torna bastante consciente dele numa crise. Como se lida com o medo no momento em que surge uma onda de medo? Por que esperamos pela crise? Estou apenas perguntando.

P: O senhor não pode evitá-la.

K: Um momento. Nós dizemos que o medo sempre existe, que ele é parte da nossa estrutura humana. A estrutura biológica, psicológica, toda a estrutura do ser está com medo. O medo existe, é parte do mais minúsculo ser vivo, da célula mais diminuta. Por que esperamos que haja uma crise para tomarmos consciência dele? Essa é a forma mais racional de aceitá-lo. Pergunto: por que preciso ter uma crise para aprender a lidar com o medo?

P: Caso contrário ele não existe; posso enfrentar alguns medos de forma inteligente. Há quem enfrente o medo da morte. É possível encará-lo com inteligência. É possível encarar outros medos de maneira inteligente?

K: Você diz que pode encarar esses medos de modo inteligente. Duvido que você os enfrente assim. Duvido que você possa fazer uso da inteligência antes de ter resolvido o medo. A inteligência só aparece quando não existe o medo. A inteligência é luz e você não pode lidar com a escuridão quando não há luz. A luz só existe quando não há escuridão. Estou perguntando se você pode lidar com o medo de modo inteligente quando ele existe. Afirmo que não. Você pode racionalizá-lo, pode ver a natureza dele, evitá-lo ou ir além dele, mas isso não é inteligência.

P: Eu diria que a inteligência reside numa percepção do medo que surge, sem interferir com ele, sem moldá-lo, sem se afastar dele, até que ele acabe se extinguindo. Mas o senhor diz que onde há inteligência não há medo.

N: Nesse caso o medo não aparecerá?

K: Não deixamos que o medo apareça.

N: Acredito que o medo sempre surge. Nós é que não permitimos que ele floresça.

K: vejam vocês, estou examinando com cuidado toda reação diante de uma crise. O medo existe; por que você precisa de uma crise para despertá-lo? Você diz que uma crise acontece e você acorda. Uma palavra, um gesto, um olhar, um movimento, um pensamento, esses são os desafios que você diz que causam o medo. Pergunto: por que esperamos pela crise? Estamos pesquisando. Você sabe o que a palavra "pesquisar" significa? Significa "delinear". Portanto, estamos delineando, não estamos dizendo isso ou aquilo. Estamos entendendo isso e estou perguntando: por que espero por uma crise? Um gesto, um pensamento, uma palavra, um olhar, um sussurro, qualquer uma dessas coisas é um desafio.

N: Eu não procuro a crise. A única coisa da qual estou ciente é que ela surge e que fico paralisado.

K: por que você fica paralisado? Porque o desafio é necessário para você. Por que você não toma contato com o medo antes do desafio? Você diz que a crise desperta o medo. A crise inclui o pensamento, o gesto, a palavra, o sussurro, um olhar, uma carta. É um desafio que desperta o medo? Digo a mim mesmo: por que as pessoas não deveriam despertar para o medo sem um desafio? Se o medo existe, ele precisa ser despertado. Ou ele está dormindo? E se ele está dormindo, por que está assim? A mente consciente receia que o medo possa despertar? Ela o fez dormir e recusou-se a olhar para ele?

Vamos devagar; estamos avançando com a velocidade de um foguete. A mente consciente ficou apavorada ao perceber o medo e, portanto, mantém o medo sob controle? Ou o medo está lá, desperto, e a mente consciente não o deixa florescer? Vocês admitem que o medo faz parte da vida humana, da existência?

P: Senhor, o medo não tem existência independente, à parte da experiência externa, sem os estímulos da experiência externa.

K: Espere, duvido disso; não aceito a sua afirmação. Você está dizendo que sem os estímulos externos o medo não existe. Se isso é verdadeiro para você , deve ser para mim também, porque sou um ser humano.

P: Incluo nisso os dois estímulos: o externo e o interno.

K: Eu não distingo o externo do interno. É tudo uma única atividade.

P: O medo não tem existência independente dos estímulos.

K: Você está fugindo do assunto, Pupul.

P: O senhor está perguntando: por que você não olha, por que não encara o medo frente a frente?

K: Eu digo a mim mesmo: "Devo esperar por uma crise para que esse medo desperte?" Essa é toda a minha pergunta. Se ele existe, quem o pôs para dormir? É porque a mente consciente não pode resolve-lo? A mente consciente está interessada em resolvê-lo e, não sendo capaz, coloca-o para dormir, reprime-o. E quando acontece uma crise a mente consciente fica abalada e surge o medo. Portanto, eu digo a mim esmo: por que a mente consciente deve reprimir o medo?

S: Senhor, o instrumento da mente consciente é a análise, a capacidade de reconhecimento. Com esses instrumentos, ele é incapaz de lidar com o medo.

K: Ela não pode lidar com ele. Mas o que é necessário é a verdadeira simplicidade, não análise. Portanto, a mente consciente não pode lidar com o medo; ela diz: quero evitá-lo, não posso olhar para ele. Olhe bem o que você está fazendo. Você está esperando que uma crise o desperte e a mente consciente, durante todo o tempo, está evitando as crises. Ela está evitando, raciocinando, racionalizando. Somos mestres nesse jogo. Portanto, digo a mim mesmo, se o medo existe, ele está desperto. Você não pode adormecer uma coisa que faz parte da nossa herança. A mente consciente se abala quando acontece uma crise. Portanto, lide com ele de uma forma diferente. Essa é a minha posição. Isso é verdade? O medo básico é o da não-existência; ele é uma sensação de incerteza, de não ser, de morrer. Por que a mente não descobre esse medo e se arruma com ele? Por que ele deve esperar por uma crise? Você está com preguiça e, portanto, não teve a energia necessária para chegar à raiz dele? O que estou dizendo é irracional?

P: Não é irracional. Eu estou tentando ver se é válido.

K: Dizemos que tudo o que é vivo tem pavor de não existir, de não sobreviver. O medo faz parte de nossas células sanguíneas. Todo o nosso ser tem pavor de morrer, pavor de ser morto. Portanto, o medo de não existir faz parte da nossa estrutura psicológica, bem como da biológica; e eu me pergunto por que uma crise é necessária, por que o desafio deve se tornar importante? Oponho-me ao desafio. Quero estar à frente do desafio e não atrás dele.

P: Não podemos concordar com o que o senhor está dizendo.

K: Por que não? Vou-lhe mostrar. Eu sei que vou morrer, mas intelectualizei, racionalizei a morte. Portanto, quando digo que a minha mente está bem à frente da morte, ela não está. Ela só está bem à frente do pensamento — que não está muito à frente.

P: verifiquemos a realidade disso. Alguém encara a morte, sente que está um passo à frente e se move; e de repente percebe que não está à frente dela.

K: Entendo. Tudo é o resultado de um desafio, tenha isso acontecido ontem ou há um ano.

P: Assim, a pergunta é: com que instrumento, com que energia, de que dimensão alguém vê, e o que esse alguém vê?

K: Eu quero ser bem claro. O medo faz parte da nossa estrutura, de nossa herança. Biológica, psicologicamente, as células cerebrais têm pavor de não existir. E o pensamento diz: "Não vou considerar isso". Assim, quando acontece o desafio, o pensamento não pode acabar com ele.

P: O que você quer dizer quando afirma que o pensamento diz: "Não vou considerar isso?"

N: O pensamento quer considerar isso também.

K: O pensamento não pode considerar o fim de si mesmo. Quanto a isso, ele só pode racionalizar. Pergunto a vocês: por que a mente espera por um desafio? Isso é mesmo necessário? Se vocês disserem que é necessário, então vocês estão esperando por um desafio.

P: Digo que não sei. Só sei que o desafio surge e o medo aparece.

K: Não, o desafio desperta o medo. Atenhamo-nos a isso; pergunto a vocês: por que vocês esperam por um desafio? Para despertar o medo?

P: Essa pergunta é um paradoxo. O senhor diria que não espera o desafio, mas suscita o desafio?

K: Não, sou totalmente contrário ao desafio. Vocês estão compreendendo mal. Minha mente nunca aceitará o desafio. O desafio não é necessário para despertar o medo. Dizer que estou adormecido e que o desafio é necessário para me despertar é uma afirmação errada.

P: Não, senhor. Não é isso que estou dizendo.

K: Então ela está acordada. Agora, o que está dormindo? É a mente consciente? Ou é a mente inconsciente, adormecida, da qual algumas partes estão acordadas?

P: Quando estou acordada, estou acordada.

N: O senhor acolhe o medo?

K: Se você está acordado, nenhum desafio é necessário. Portanto, você rejeita o desafio. Se, como dissemos, a morte faz parte da nossa vida, então estamos acordados o tempo todo.

P: Não o tempo todo. Não temos consciência do medo. Mas ele está lá, o tempo todo, debaixo do tapete. Porém, você não olha para ele.

K: Digo que ele está debaixo do tapete, levante-o e olhe-o. Ele está lá. Este é o meu argumento. Ele está lá e acordado. Portanto, não é preciso um desafio para fazê-lo acordar. Eu sinto pavor o tempo todo, de não existir, de morrer, de não atingir a meta. Este é o medo básico da nossa vida, do nosso sangue, e ele existe, sempre se observando, se guardando, se protegendo. Mas ele não está totalmente desperto. Não está, nem sequer por um momento, adormecido. Portanto, o desafio não é necessário. O que você faz com relação a ele e como você lida com ele, isso vem depois.

P: Esse é o fato.

A: Vendo tudo isso, o senhor não aceita o fator da não-atenção?

K: Eu disse que ele está acordado; não estou falando sobre atenção.

A: O medo está ativo, atuante.

K: É como uma cobra no quarto: ela está sempre lá. Posso procurar em todos os cantos, mas ela está lá. A mente consciente está interessada em como lidar com ela, e como não pode fazê-lo, ela se afasta. É quando a mente consciente recebe um desafio e tenta enfrentá-lo. Você é capaz de encarar uma coisa viva? Para isso não é necessário um desafio. Mas devido ao fato de a mente consciente ter-se escondido do medo, o desafio é necessário. Certo, Pupul?

N: Pensamos nisso apenas como uma possibilidade; essa sombra ainda está na mente.

K: reflita sobre a questão; não se apresse em tirar conclusões. Você se apressou em tirá-las. Minha mente recusa o desafio. A mente consciente não permitirá que o desafio a desperte. Ela está acordada. Mas vocês admitem o desafio. Eu não. Ele não faz parte da minha experiência. A questão seguinte consiste em saber se quando a mente consciente está desperta para o medo, ela não é capaz de convidar algo que existe. Vá devagar. Não tire conclusões em momento algum. Assim, a mente consciente sabe que o medo está lá, alerta. Então, o que vamos fazer a seguir?

P: Há aí uma inadequação.

N: Eu estou acordado.

K: Você não está compreendendo absolutamente. É a mente consciente que tem pavor disso. Quando ela está acordada, não sente pavor. Em si mesma, ela não sente pavor. A formiga não sente pavor. Se ela for esmagada, será apenas isso. É a mente consciente que diz que sinto pavor disto, de não existir. Mas quando sofro um acidente, por exemplo, se meu avião espatifa, não há medo. No momento da morte, digo: "Sim, agora sei o que significa morrer". Mas a mente consciente, com todos os seus pensamentos, diz: "Meu Deus" Vou morrer, não quero morrer, não posso morrer, tenho de me proteger" — é dessa coisa que tem pavor. Você já observou uma formiga? Ela nunca fica aterrorizada; se alguém a mata, ela morre. Agora, você então entende alguma coisa.

N: O senhor já observou que, se colocarmos um pedaço de papel na frente de uma formiga, ela se desvia dele?

K; Ela quer sobreviver, mas não está pensando em sobreviver. Assim, voltando ao assunto, é o pensamento que cria o medo. É só o pensamento que diz: "Vou morrer, estou só. Não atingi o meu objetivo". Veja isto: essa é a eternidade intemporal, essa é a eternidade verdadeira. Veja como isso é extraordinário. Por que deveria eu estar assustado se o medo faz parte do meu ser? É apenas quando o pensamento diz que a vida deve ser diferente que há medo. A mente pode permanecer completamente imóvel? A mente pode estar completamente estável? Então surge essa coisa. E quando essa coisa está desperta, qual é então a raiz central do medo?

P: Isso já aconteceu com o senhor?

K: Várias vezes, muitas vezes, quando a mente está completamente estável, sem nenhuma aversão, sem aceitar ou negar, sem racionalizar nem fugir, não há nenhuma atividade de qualquer espécie. Chegamos à raiz dela, não é mesmo?

Krishnamurti — Diálogos sobre a visão intuitiva - Cultrix

Diálogo sobre o despertar da Kundalini

Krishnamurti: Antes de mais nada, se você realmente quer falar, quer ter um diálogo sobre a Kundalini, você seria capaz de esquecer tudo o que já ouviu a respeito dela? Seria? Estamos abordando um assunto muito sério. Você está disposta a esquecer tudo o que já ouviu sobre ela, o que os seus gurus contaram a você sobre ela, ou das tentativas para despertá-la? Você pode começar do nada?

Então, você tem de indagar, sem conhecer realmente coisa alguma sobre a Kundalini. Você sabe o que está acontecendo atualmente nos Estados Unidos, na Europa? Os centros de Kundalini são abertos por pessoas que dizem ter tido a experiência do despertar da Kundalini. Os cientistas estão interessados nela, hoje em dia. Eles acham que, ao fazer certos tipos de exercícios, certos tipos de respiração, despertarão a Kundalini. Todo o interesse pela Kundalini se transformou numa máquina de fazer dinheiro, e esse conhecimento está sendo dado a pessoas que são terrivelmente perniciosas.

Questionador: Queremos apenas saber se há uma energia que pode eliminar o condicionamento.

Krishnamurti: Enquanto a atividade egocêntrica existir, você não poderá entendê-la. É por isso que me oponho a qualquer discussão sobre a Kundalini ou sobre o que quer que seja essa energia, porque não fizemos o trabalho preliminar. Não levamos uma vida correta e queremos acrescentar-lhe algo novo e, assim, levar avante o nosso mal.

Vijay Anand: Mesmo depois de despertar a Kundakini, a atividade egocêntrica continua.

Krishnamurti: Eu não sei se a Kundalini foi despertada. Não sei o que você quer dizer com isso.

Vijay Anand: Nós realmente queremos entender isso, porque às vezes trata-se de uma realidade.

Pupul: O senhor conhece uma energia quando a atividade egocêntrica termina? Nós supomos que esteja aí a fonte dessa energia infinita. Pode não ser.

Krishnamurti: Você está dizendo que o fim desse movimento do centro para a circunferência e da circunferência para o centro, o fim disso…

Pupul: O fim momentâneo disso…

K: Não, o fim disso, o fim definitivo disso — é a liberação dessa energia ilimitada?

Pupul: Eu não estou dizendo isso.

Krishnamurti: Eu é que estou dizendo.

Pupul: O que é uma coisa muito diferente do meu modo de dizer.

Krishnamurti: Podemos colocar a energia da Kundalini no seu devido lugar? Um certo número de pessoas teve a experiência do que elas chamam de despertar da Kundalini, o que eu duvido. Não sei se se trata de uma realidade de fato ou de algum tipo de atividade psicológica que é, então, atribuída à Kundalini. Você vive uma vida imoral, no sentido de ser uma vida de futilidade, de sexo, etc. e, então, diz que a Kundalini está desperta. Mas a sua vida diária, que é uma vida egoísta, continua.

Pupul: Senhor, se vamos examiná-la, vejamos como ela se manifesta em alguém. O despertar da Kundalini está ligado a certos pontos psíquicos localizados em determinadas partes do corpo humano. Isso é o que se diz. A primeira pergunta que eu gostaria de fazer é: é isso mesmo? A liberação dessa energia, que não tem fim, tem algo a ver com os centros psíquicos nas partes físicas do corpo?

Achyut: Antes de entrarmos nesses detalhes, senhor, não é importante indagar se a pessoa que adquire essa energia é incapaz de fazer o mal?

K: Não, senhor. Cuidado! Como podemos dizer que alguém é incapaz de fazer o mal? Dizem que muitos gurus na Índia fizeram um mal tremendo desencaminhando as pessoas.

A: É o que eu digo, senhor. Eu sinto que, enquanto o coração da pessoa não estiver purificado do ódio e enquanto essa sede de fazer o mal não for completamente transformada, enquanto isso não acontecer, essa energia não serve para nada, a não ser para fazer mais mal.

K: Achyutji, Pupulji está perguntando sobre a aceitação habitual do poder dessa energia, que passa por vários centros, sobre a libertação da energia, e assim por diante.

A: Eu digo, senhor, que antes de fazer essa pergunta, há na tradição indiana uma palavra que eu acho muito importante. Essa palavra é adhikar. Adhikar significa que a pessoa deve se purificar o suficiente antes que possa fazer essa pergunta a si mesma. É uma questão de purificação.

K: Você está dizendo que, a menos que haja uma parada desse movimento que vai do centro para a circunferência e da circunferência para o centro, essa pergunta de Pupulji não é válida?

A: Eu acho que sim. Usarei outra palavra, a palavra budista sheela. É, na verdade, a mesma cosia. A palavra adhikar usada pelos hindus e a palavra sheela usada pelos budistas significam de fato a mesma coisa.

P: Suyponho que quando alguém faz a pergunta, o faz com um profundo conhecimento de si próprio. Não é possível alguém investigar o eu, que também libera energia, se a sua vida não passou por um grau de equilíbrio interior; se não passou, o que K diz não tem nenhum significado. Quando alguém ouve Krishnaji, recebe a resposta na mesma profundidade com que se expôs e, portanto, penso que está certo fazer a pergunta. Por que essa pergunta é muito mais perigosa do que qualquer outra pergunta? Por que é mais perigosa do que indagar o que é o pensamento, o que é a meditação, o que é isso ou aquilo? Para a mente que compreende, ela compreenderá isso e aquilo. Para a mente que não compreende, ela não compreenderá nem isso nem aquilo. Para a mente que quer fazer uso do mal, ela se ocupará do mal de todas as coisas.

K: A menos que a sua vida, a sua vida diária, seja uma forma de vida completamente não-egocêntrica, o outro não poderá ser aceito.

Vijay Anand: Há o surgimento de energia — há contentamento primeiro e, depois, medo.

Sunanda: Gostaríamos de saber por que essa energia gera medo.

VA: O medo vem mais tarde. Experimenta-se a morte e tudo se esvai. Você está vivo de novo e surpreso por estar vivo de novo. Você redescobre o mundo e os seus pensamentos, as suas posses e seus desejos, e o mundo inteiro, vagarosamente, retornam.

K: Você chamaria isso de despertar da Kundalini?

VA: Não sei, senhor.

K: Mas, por que você rotula isso de o “despertar da Kundalini”?

VA: Durante alguns dias depois disso, durante um mês, toda a vida muda. O sexo e os desejos se desvanecem.

K: Entendo. Mas, você retorna a essa questão.

VA: Retorna-se à questão porque não se entende.

K: Isso é o que estou dizendo, senhor. Quando há um retorno a algo, duvido que você tenha tido essa energia.

P: Por que essa pergunta causa tanta agitação? A maioria das pessoas passa por uma série de experiências psíquicas no processo de autoconhecimento. Alguém também entende, pelo menos alguém entendeu porque ouviu Krishnaji dizer que todas as experiências psíquicas, quando surgem, têm de ser postas de lado.

K: Isso está entendido? A experiência psíquica deve ser totalmente posta de lado.

A: Nós a deixamos de lado; não damos mais importância a ela.

VA: Algumas passagens novas se abrem no corpo, e a energia continua a subir por essas passagens sempre que se faz necessário.

K: Por que o senhor diz que ela é algo extraordinário? Por que nós atribuímos algo extraordinário a isso? Estou apenas sugerindo, pode ser que vocês tenham se tornado muito sensíveis. Isso é tudo. Sensíveis demais.

VA: Tenho mais energia.

K: A sensibilidade tem mais energia. Mas por que vocês a chama de extraordinária, de Kundalini, disto, daquilo ou sei lá do quê?

P: O problema é saber até que ponto sua vida está totalmente mudada. Eu quero dizer que o único sentido do despertar é descobrir se há uma forma totalmente nova de olhar, uma forma nova de viver, uma forma nova de se relacionar.

Questionador: Senhor, eu quero fazer uma pergunta. Aceitando como verdadeiro, que alguém esteja levando uma vida holística, nesse caso há alguma semelhança com a Kundalini?

K: O senhor está levando uma vida holística?

Q: Não.

K: Então não faça essa pergunta.

P: Estou perguntando de um ponto de vista totalmente diferente. Como se sabe, a Kundalini é o despertar de certas energias psíquicas que existem em certos pontos físicos do corpo humano, e que é possível despertar as energias psíquicas mediante várias práticas que, então, à medida que passam por esses vários estados e centros psíquico-físicos, transformam a consciência; quando, finalmente, elas abrem caminho, rompem com qualquer atividade egoísta. Esse deve ser o significado básico de tudo isso.

Apa Pant: A mescalina pode fazer isso; você pode fazer isso.

P: Eu estou simplesmente perguntado a Krishnaji se há uma energia que, ao despertar por si só, não ao ser despertada, se essa energia, ao despertar completamente, elimina o centro.

K: Eu diria isso de outro modo: a menos que o movimento egocêntrico pare, o outro movimento não pode existir.

A: Eu digo que toda tradição de Hatha Yoga criou a crença de que, ao manipular esses centros, você pode fazer coisas para você mesmo. A ideia toda está baseada numa crença errada.

P: Apague tudo.

A: Acho bom.

P: Como não parece ser possível continuar com essa discussão, posso fazer outra pergunta? Qual é a natureza do solo que precisa ser preparado para poder receber aquilo que é ilimitado?

K: Você está cultivando o solo do cérebro, da mente, para esse “plantio”?

P: Eu entendo essa pergunta. Mas eu não posso responder nem sim nem não a ela.

K: Então, por que chama-la de energia e trazer à baila a palavra “solo”? Prepare-o, trabalhe-o. Vivemos uma vida de contradição, de conflito, de miséria. Eu quero descobrir se isso pode acabar com a tristeza, com toda a sua tristeza humana, e indagar acerca da natureza da compaixão.

S: Há alguma outra forma de vida em que a compaixão também faça parte do cultivo do eu? Por que o senhor está fazendo essa pergunta, por que quer cultivar o solo?

K: Eu afirmo que, enquanto vocês tiverem motivo para cultivar esse solo a fim de receber essa energia, vocês nunca a receberão.

S: Qual é o motivo, senhor? É toda a prisão. Ver toda a prisão e perguntar se existe alguma outra saída dela: isso é um motivo? Se assim for, ficamos presos num círculo, numa armadilha.

K: Não, você não ouviu. Vivo uma vida de aflição, de miséria, de confusão. Esse é o meu sentimento básico e isso pode terminar? Não há nenhuma razão?

S: Aqui não há nenhuma razão. Mas o senhor também está fazendo uma pergunta adicional.

K: Não. Não tenho mais perguntas, só essa primeira. Todo esse processo pode terminar? Só então poderei responder às outras perguntas, que têm um significado bastante amplo.

P: Qual a natureza do solo da mente humana que tem de ser cultivado para receber o outro? O senhor me diz que essa também é uma pergunta errada. O senhor diz que estou em conflito, que estou sofrendo e que vejo que uma vida de conflito e de sofrimento não tem fim.

K: Isso é tudo. Se ela não tem fim, então a outra indagação, a outra investigação e o desejo de despertá-la, a fim de eliminar esta, constituem um processo errado.

P: Obviamente.

K: É como contratar uma companhia de limpeza para vir limpar a sua casa. Digo que no ato de limpar a casa, muitas coisas importantes vão acontecer. Você terá uma espécie de clarividência, aquilo que chamamos de siddhis, e tudo o mais. Tudo isso irá acontecer. Mas se você ficar enredado nisso, não poderá seguir adiante. Se não ficar enredado nisso, os céus se abrirão para você. Você está perguntando, Pupul, se existe um solo a ser preparado, não a fim de receber isso, mas sim se o solo tem de ser preparado? Prepare-o, trabalhe nele, limpe toda a casa para que não haja vestígio de fuga. Só então poderemos perguntar qual é o estado sobre o qual estamos falando. Se vocês estão fazendo isso, preparando-se, trabalhando para acabar com a tristeza, não se deixando levar, se vocês estão trabalhando nisso e vêm dizer que há algo conhecido como a energia da Kundalini, então eu me disponho a ouvir.

A: Senhor, a razão pela qual me opus é que no texto Pradipika da Hatha Yoga, afirmamos que essa indagação sobre a Kundalini é feita para fortalecer você na sua busca.

K: Pelo amor de Deus, Achyutji, você está trabalhando na limpeza da casa?

A: Certamete.

K: Agora, qual é a pergunta? Há uma energia que não é mecânica, que é infinita, que está se renovando? Eu afirmo que há. Com toda a certeza. Mas não é o que vocês chamam de Kundalini. O corpo deve ser sensível. Se você está trabalhando, limpando a casa, o corpo fica muito sensível. O corpo, então, tem sua própria inteligência que a mente lhe dita. Portanto, o corpo fica extremamente sensível, não sensível aos seus desejos nem sensível às suas vontades, mas se torna sensível por si próprio. Certo? Então, o que acontece? Se vocês querem realmente que eu fale sobre isso, falarei. Duvido das pessoas que falam do despertar da Kundalini. Elas não trabalharam com os outros, mas dizem ter despertado a Kundalini. Portanto, duvido da sua habilidade, da sua verdade. Não me oponho, mas estou duvidando. De um homem que come carne, que quer publicidade, que quer isto ou aquilo, e diz que a Kundalini foi despertada, digo que ele está sendo contraditório. Deve haver uma limpeza dessa casa o tempo todo. Então Pupul diz: “Podemos falar sobre uma energia que sinto que deve existir?”, não teoricamente, mas da qual ela disse que teve um vislumbre, uma energia que é infinita; e K vem e diz “sim”, isso existe. Há uma energia que está se renovando o tempo todo, que não é mecânica, que não tem uma causa, que não tem início e, portanto, não tem fim. É um movimento eterno. Eu afirmo que ela existe. Que valor ela tem para o ouvinte? Eu digo “sim” e vocês me ouvem. Eu pergunto a mim mesmo que valor tem isso para vocês? Vocês irão no encalço dessa energia e deixarão de limpar a casa?

P: Isso significa, senhor, que, para a pessoa que indaga, o cultivo do solo é o fim do sofrimento; isso é que é essencial.

K: Esse é o único trabalho. Nada mais. É a coisa sagrada, portanto você não pode simplesmente convoca-la. E todos vocês a estão convocando.

A limpeza da casa exige uma disciplina muito grande; não a disciplina do controle, da repressão e da obediência, vocês estão entendo? Em si mesma, ela requer uma atenção muito grande. Quando você dispensa toda a atenção, então vê acontecer um tipo de coisa totalmente diferente, uma energia que nunca se repete, uma energia que não está indo vindo. Não é como tê-la um dia e, um mês depois, não tê-la mais. Ela implica manter a mente completamente vazia. Vocês são capazes de fazer isso?

VA: Por um tempo.

K: Não, não. Eu perguntei: a mente pode manter-se vazia? Então, essa energia existe. Você nem sequer precisa pedir por ela. Quando há espaço, a mente está vazia e, portanto, cheia de energia. Assim, ao limpar, ao terminar de fazer o que deve ser feito com as coisas da casa, com a tristeza, a mente pode estar completamente vazia, sem motivação, sem desejo? Quando você está trabalhando nisso, mantendo a casa limpa, outras coisas vêm naturalmente. Não é você quem está preparando o solo para isso. Isso é meditação.

P: E a natureza disso é a transformação da mente humana.

K: Reparem no que Apa Saheb estava dizendo; estamos programados por séculos de condicionamento. Quando ela cessa, há um fim. Se você puxa o plugue do computador, ele não pode funcionar mais. Agora a pergunta é: pode esse centro, que é egoísmo, acabar? Pode deixar de funcionar? Esse centro pode acabar? Quando ele acaba, não há movimento no tempo. Isso é tudo. Quando o movimento da mente do centro para a periferia para, o tempo para. Quando não há nenhuma atividade por parte do egoísmo, há um tipo totalmente diferente de atividade.

Krishnamurti – Diálogos sobre a visão intuitiva - ICK

Alguém pode saber o que é bom para o povo?


Todo partido político sabe, ou acha que sabe,  o que é bom para o povo. Mas o que é verdadeiramente bom não criará antagonismo, seja neste país ou fora dele; trará unidade entre homem e homem;  o que é verdadeiramente bom se concentrará na totalidade do homem, e não em algum beneficio superficial que só pode levar a maiores calamidades e infelicidades; colocará um fim na divisão e na inimizade gerados pelo nacionalismo e pelas religiões organizadas. E o que é bom pode ser encontrado com tanta facilidade?

“Se tivermos de levar em consideração todas as implicações do que é bom, não chegaremos a lugar algum; não poderemos agir. Necessidades imediatas exigem ações imediatas, embora tais ações possam trazer confusão marginal”, replicou o político. “Simplesmente não temos tempo de ponderar, filosofar. Alguns de nós estão ocupados do começo da manhã até a tarde da noite, e não podemos sentar para considerar o total significado de toda e qualquer ação que precisamos tomar. Literalmente, não  podemos arcar com o prazer da ponderação profunda e, portanto, deixaremos este prazer a outros.”

"Senhor parece que o senhor sugere", disse um dos homens que até agora estava em silêncio, "que, antes que executemos o que presumimos ser uma boa ação, deveríamos examinar completamente o significado de tal ato, já que, mesmo aparentemente benéfico, pode produzir maior infelicidade no futuro. Mas é possível ter tamanha perspicácia sobre nossas próprias ações? No momento da ação, talvez pensemos que temos essa perspicácia, porém, talvez mais tarde, venhamos a descobrir nossa falta de visão."

No momento da ação, mostramo-nos entusiasmados, impetuosos, somos arrebatados por uma idéia ou pela personalidade e a chama de um líder. Todos os lideres, desde o tirano mais brutal ao mais religioso dos políticos, afirmam que estão agindo pelo bem da humanidade, mas todos conduzem à sepultura; ainda assim, sucumbimos à sua influência e os seguimos. Senhor, nunca foi influenciado por um líder assim? Talvez ele já não esteja vivo, mas o senhor ainda pensa e age de acordo com as sanções, fórmulas e o padrão de vida dele; ou talvez influenciado por um líder mas recente. Assim, passamos de um líder a outro, abandonando-os sempre que nos convém  ou quando surge um melhor, com mais promessas de fazer o “bem”. Em nosso entusiasmo, arrebanhamos outras pessoas para a teia de nossas convicções, e muitas vezes elas permanecem nessa teia de nossas convicções, e muitas vezes elas permanecem nessa teia até mesmo quando já passamos a outros líderes  e outras convicções. Contudo, o que é bom é livre de influência, coerção e conveniência, e qualquer ação que não seja boa nesse sentido, inevitavelmente, gerará confusão e infelicidade.

“Acho que todos podemos admitir culpa de sucumbir à influência de um líder, direta ou indiretamente”, aquiesceu aquele que falara por último, “mas nosso problema é este: percebemos que recebemos muitos benefícios da sociedade e damos pouquíssimo em troca, e ao vermos tanta infelicidade, por todo lado, sentimos que temos uma responsabilidade para com a sociedade e que temos de fazer algo para aliviar esse sofrimento interminável. Contudo, a maioria de nós se sente bastante perdida, e por isso segue alguém de personalidade forte. Sua vida dedicada, a evidente sinceridade, os pensamentos e as ações vitais nos influenciam fortemente, e nos tornamos seus seguidores de várias maneiras; sob sua influência, logo estamos envolvidos na ação, seja pela libertação do país ou pela melhoria das condições sociais. A aceitação da autoridade está enraizada em nós e dessa aceitação da autoridade flui a ação. O que você diz é tão contrário a tudo a que estamos acostumados que não deixa qualquer parâmetro a partir do qual ponderar e agir. Espero que você perceba nossa dificuldade.

Certamente, senhor, que qualquer ação baseada na autoridade de um livro, independentemente do quão sagrado, ou na autoridade de uma pessoa, independentemente do quão nobre e santa, é uma ação irrefletida que, de qualquer forma, trará confusão e dor. Neste  país e em outros, o líder extrai sua autoridade da interpretação dos chamados livros sagrados, que cita exaustivamente, das próprias experiências, que são condicionados pelo passado, ou de sua vida austera, também baseada no padrão da tradição dos santos. Portanto, a vida do líder é determinada pela autoridade, assim como a vida do seguidor; ambos são escravos do livro e da experiência ou conhecimento de outro. Com essa bagagem, vocês desejam refazer o mundo. Isso é possível? Ou o senhor dever descartar toda essa perspectiva autoritária e hierárquica da vida e abordar os muitos problemas com uma mente nova e curiosa? Viver e agir não são coisas separadas, mas um processo interligado, unitário. Entretanto, agora, vocês os separaram, não foi? Vocês consideram a vida cotidiana, com seus pensamentos e ações, diferente da ação que mudará o mundo.

"Novamente, é verdade", continuou o último interlocutor. "Mas como nos livraremos desse jugo de autoridade e tradição, que aceitamos voluntária e alegremente desde a infância? Ele é parte de nossa tradição imemorial, e  agora vem você dizer que deixemos tudo de lado e que só podemos contar conosco. Pelo que ouvi e li, você diz que o próprio Atman  não tem permanência. Você pode ver, portanto, por que estamos confusos".

Será que vocês jamais questionaram o modo autoritário de existência? O próprio questionamento da autoridade é seu fim. Não há qualquer método ou sistema por meio do qual a mente possa libertar-se da autoridade e da tradição; se houvesse, então o sistema se tornaria o elemento dominante.

Por que aceitam a autoridade, no sentido mais profundo da palavra? Assim como o guru, vocês aceitam a autoridade para ter segurança, certeza, para serem confortados, para vencerem, para alcançarem a outra margem. Vocês e o gurus são devotos do sucesso; ambos são movidos por ambição. Onde há ambição, não amor; e ação sem amor não tem significado algum.

"Intelectualmente, compreendo que o que você diz é verdade, mas internamente, emocionalmente, não sinto autenticidade nessas palavras."

Não existe compreensão intelectual; ou compreendemos, ou não. Dividirmo-nos em compartimentos herméticos é outro de nossos absurdos. Melhor é admitir para nós mesmos que não compreendemos, afirmar que existe uma compreensão intelectual só gera arrogância e conflito autoimposto.


Krishnamurti – Comentários sobre o viver

sábado, 16 de fevereiro de 2013

Quem é a entidade que está "vivendo com o medo"?

Quem é a entidade que está "vivendo com o medo", seguindo-o, observando-o? Quem é o observador e que está ele a observar?... Quem é o observador, quem é que está vivendo, a observar, e a tomar nota de todos os movimentos das diferentes formas de medo, e ao mesmo tempo consciente do fato central — do medo? É o observador uma entidade morta, um ser estático? Não esteve ele a acumular uma enorme quantidade de conhecimentos e informações a respeito de si próprio, a aprender tantas coisas, a ter tantas experiências; e toda essa experiência e conhecimento, essa infinita variedade de solidão e de sofrimento, o passado — tudo isso não é "coisa morta", memória? Não é uma coisa morta que observa e vive com o movimento do medo? O observador é o passado estático, morto, ou é uma coisa viva? Qual a resposta? Sois a entidade morta que observa o que é vivo? Ou sois uma entidade viva a observar uma coisa viva? No observador existem os dois estados. Quando observais uma árvore, vós a observais com o conhecimento botânico dessa árvore e observais também o movimento vivo da árvore, o vento a soprar por entre os ramos, a agitar as folhas e o tronco. Ela é uma coisa viva e estais a olhá-la com o conhecimento acumulado a respeito dessa árvore; e esse conhecimento é "coisa morta". Ou estais a olhá-la sem nenhum conhecimento acumulado e, portanto, vós, como entidade viva, estais olhando uma "coisa viva". O observador é tanto o passado como o presente vivo; o observador é o passado a tocar o presente vivo.


Vejamos a coisa mais de perto. Quando vós, o observador, olhais para a vossa esposa, vosso amigo, estais a observar com as memórias de ontem, estais consciente de que o passado está contaminando o presente, ou estais observando como se não existisse nenhum ontem? O passado está sempre a projetar sua sombra no presente, a memória do passado: o que "ela" me disse, o que "ele" me disse: o prazer, a lisonja ontem fruída, o insulto ontem sofrido. Essas memórias tocam e desfiguram o presente. O observador é passado e presente, é um ente meio-morto, meio-vivo, e é neste estado de vida-morte que ele olha.
 
Existe um observador não pertencente ao passado nem ao presente, considerados como tempo? Que existe o observador que vem do passado, está bastante claro — a imagem o símbolo, a ideia, as ideologias, etc. — o passado. Entretanto, ao mesmo tempo ele está ativamente presente, ativamente examinando, olhando, observando, escutando. Esse escutar, esse olhar é influenciado pelo passado, e o observador se encontra ainda dentro do campo do tempo. Quando ele observa o objeto — o medo ou outra coisa qualquer — dentro do campo do tempo, não está vendo a totalidade do medo. Ora, pode o observador "passar além", de modo que (ele) não seja passado nem presente: seja a coisa observada, a "coisa viva"? Esta é a verdadeira meditação.
 
É muito difícil exprimir em palavras a natureza daquele estado mental no qual existe não só o passado, como observador, mas também o observador que está observando, escutando, porém com um capítulo, uma raiz no passado. Por isso que o observador vive no passado e no presente (que é influenciado pelo passado), existe a divisão entre "observador" e a "cosia observada". Essa divisão, esse espaço, esse intervalo de tempo entre o observador e a cosia observada, só pode terminar quando existe uma outra "qualidade" não pertencente ao tempo, não pertencente ao passado nem ao presente; porque só então o observador é a coisa observada — o que não constitui um processo de identificação com a coisa observada.
 
(...) É necessário compreender o observador e não a coisa observada, que tem muito pouco valor. O medo tem, com efeito, insignificante valor, quando nele refletimos; o que tem valor é a maneira como olhamos o medo, o que fazemos ou o que não fazemos com o medo. A análise, a pesquisa da causa do medo, o eterno indagar, perguntar, sonhar — tudo isso constitui o observador; portanto, a compreensão do observador tem mais valor do que a compreensão da coisa observada. Quando se olha o observador — que é "nós mesmos" — vemos não só que esse "nós mesmos" é do passado, constituído que é de memórias mortas, esperanças, "culpa", saber, mas também que todo o saber se acha no passado. Quando digo "Conheço-te", isso significa que te conheço como ontem eras; não te conheço realmente agora. "Nós mesmos" é o passado; vivemos no presente contaminado pelo passado, sob a sombra do passado, enquanto o amanhã nos aguarda. Isso também faz parte do observador, está compreendido no campo do tempo — tempo no sentido de ontem, hoje e amanhã. Eis tudo o que sabemos, e nesse estado mental, de observador, olhamos o medo, o ciúme, a guerra, a família — aquela entidade enclausurante chamada "família". Com isso vivemos. O observador está sempre a tentar resolver o problema da coisa observada, a qual é o desafio, o novo, estamos sempre a traduzir o novo nos termos do "velho"; e vemos-nos, perpetuamente, até o fim da vida, em conflito.
 
Não é possível compreender intelectualmente, verbalmente, por meio de argumentos ou explicações, um estado mental no qual o observador já não tenha espaço entre si e a coisa observada; no qual o passado não esteja mais a interferir, em nenhum momento. Entretanto, é só então que o observador é a coisa observada e que o medo termina totalmente. Enquanto existe medo, não há amor. Que é o amor? Há inúmeras explicações do amor: sexo, pertencer a alguém, não ser dominado por alguém, ser nutrido psicologicamente por outrem, tudo o que se pensa em torno do sexo. É isso o que, em geral, se entende por "amor"; mas nesse amor há sempre ansiedade, ciúme, "culpa". Ora, onde existe um tal conflito, não existe amor. Isso não é um aforismo para decorar, porém um fato que devemos observar por nós mesmos. O que quer que façamos, enquanto existir o medo, enquanto existir qualquer forma de ciúme, de ansiedade, não haverá possibilidade de amar. O amor nada tem em comum com o prazer e o desejo; o prazer anda de par com o medo e, é bem óbvio, a mente que vive com medo estará, sempre e necessariamente, a buscar o prazer. O prazer só tem o efeito de aumentar o medo. Vemo-nos, pois, aprisionados num círculo vicioso. Pelo percebimento desse circulo vicioso, pelo observá-lo, pelo "viver com ele", sem jamais procurar saída (pois o círculo vicioso não se rompe pelo simples fato de fazermos alguma coisa em relação a ele), quebrá-lo-eis. Não há então prazer; não há desejo ou medo; há então uma coisa que se chama "amor".
 
Krishnamurti – Saanen, 20 de julho de 1967
Extraído do livro: Como viver neste mundo - ICK





O pensamento psicológico torna a vida um campo de batalha

Interrogante: Não é um paradoxo dizerdes que o pensamento sempre funciona em fragmentos e que, para se perceber que o pensamento funciona em fragmentos, necessita-se de energia? Isso é um círculo vicioso?

Krishnamurti: Necessito de energia para olhar, mas esse olhar se torna fragmentário e, por conseguinte, dissipa energia; assim sendo, que se deve fazer? Veja, senhor, eu necessito de energia física, necessito de energia intelectual, necessito de energia emocional, apaixonada, para compreender qualquer coisa — uma energia inquebrantável. Mas sei que estou dissipando essa energia na fragmentação; a todas as horas o estou fazendo. Digo então: "O que devo fazer?" Tenho necessidade dessa energia para resolver imediatamente os problemas da vida; no entanto, estou a dissipá-la continuamente, não tomando alimentos adequados, pensando nisso e naquilo, com meu hinduísmo, meus preconceitos, minhas ambições, inveja, avidez, etc. Ora, posso fazer alguma coisa em tal estado ?" Escutai primeiramente essa pergunta, muito atentamente, não rejeiteis, nem aceiteis. Dissipo energia e tenho necessidade de energia; quer dizer, acho-me num estado de contradição e essa mesma contradição é outro desperdício de energia. Percebo, pois, que tudo o que faço em tal estado é desperdício de energia. A mente que está confusa, por mais que se esforce, em qualquer nível, continuará confusa. Não se pense que, vivendo-se de acordo com "um momento de clareza", a confusão se dissipará. Se o tento, gera-se novo conflito e, por conseguinte, fomenta-se a confusão.

Percebo que toda ação nascida da confusão produz ou leva a mais confusão; compreendi que toda ação da mente confusa só conduz a maior confusão. Vejo isso muito claramente, vejo-o como uma coisa extremamente perigosa — como quando se percebe um grande perigo; vejo-o com a mesma clareza. Que sucede então? Não atuo mais nessas condições de confusão. Essa inação total é ação completa.

Consideremos a questão de maneira diferente. Percebo que a guerra, em qualquer forma, matar o próximo de um avião a grande altura ou com um fuzil a pequena distância; ou uma batalha entre minha mulher e mim, uma batalha comercial, um conflito interior, em mim — é sempre guerra. Posso não matar realmente um vietnamita ou americano, mas, enquanto a minha vida for um campo de batalha, estarei contribuindo para a guerra. Vejo esse fato. Vejo-o — primeiro, como a maioria de nós foi exercitada para vê-lo: intelectualmente, isto é, fragmentariamente. E vejo que, se empreendo qualquer ação nesse estado fragmentário, tal ação só contribuirá para fomentar a guerra, o conflito. Devo, antes de tudo mais, descobrir se tal estado existe, pois pode ser que se trate de um estado puramente teórico, ideológico, imaginário e, portanto, sem valor. Mas, eu tenho de descobri-lo, e para descobrir não devo aceitar a ideia de que tal estado existe. Ora, existe esse estado? Só posso verificá-lo se compreendo a natureza do conflito, totalmente — o conflito que é dualidade, o "bom" e o "mau" (o que não significa que não haja "bom" e "mau"), e o conflito entre o amor e o ciúme. Devo olhá-lo sem julgar, sem comparar — olhar simplesmente. Começo a aprender a olhar, e não a atuar. Aprendo a olhar esse complexo campo da vida, sem aceitar nem rejeitar, comparar, condenar, justificar; a olhar assim como olho uma árvore. Só posso olhar realmente uma árvore, quando não há observador, isto é, quando não se torna existente o processo fragmentário do pensamento. Olho, pois, esse vasto campo de batalha da vida, o qual suponho constituir a maneira natural de viver, esse campo onde tenho de lutar contra meu próximo, contra minha mulher; onde tenho de lutar, quer dizer, comparar, julgar, condenar, ameaçar, odiar. Olho para essa situação que aceitei, para essa vida que sou eu — e posso então olhar para mim mesmo, assim como sou, sem nenhuma comparação, condenação, julgamento? Se posso, já estou fora da sociedade, porque a sociedade pensa sempre segundo as noções de grande e pequeno, poderoso e fraco, belo e feio, etc. De um golpe, compreendi todo o processo de fragmentação e, por conseguinte, não pertenço a nenhuma igreja, nenhum grupo, nenhuma religião, nenhuma nacionalidade, nenhum partido.

Krishnamurti — Saanen, 11 de julho de 1967
Extraído do livro: Como viver neste mundo - ICK

É possível, pelo pensamento, descobrir-se uma harmônica maneira de viver?

Vós viveis fragmentariamente: no escritório sois diferentes do que sois em casa; tendes pensamentos “particulares” e pensamentos “públicos”. Assim, percebendo essa enorme separação e contradição existente entre os fragmentos, perguntamos se o pensamento pode uni-los, efetuar a integração de todos os elementos. É ele capaz de tanto?

Consequentemente, cumpre-nos investigar a natureza e estrutura do pensamento. Pode o pensamento, a atividade pensante, o processo intelectual de raciocinar, produzir uma vida harmoniosa? Para investigarmos isso, cumpre-nos investigar, examinar atentamente a natureza e estrutura da pensamento; isso significa que iremos examinar juntos o vosso pensar, não a descrição ou a explicação dada pelo orador, porquanto a descrição nunca é a coisa descrita e tampouco a explicação é a coisa explicada. Portanto, não nos deixemos enredar na explicação ou descrição, mas investiguemos juntos, verifiquemos juntos como o pensamento funciona e se ele é realmente capaz de produzir uma maneira de vida totalmente harmônica, não contraditória, completa em todas as ações. Isso é muito importante, porque, se desejamos um mundo totalmente transformado, um mundo sem corrupção, uma maneira de vida em si mesma significativa, temos de indagar se o pensamento é capaz de criar tal maneira de vida. E indagar, também, o que é o sofrimento, se ele pode findar, e o que é a dor, o medo, o amor, a morte.

(…) Cumpre, pois, investigar a sério a natureza do pensamento.

Que é pensar? Fazei a vós mesmos esta pergunta: Que é pensar? Temos de compreender o significado profundo do pensamento, porque nós vivemos pelo pensamento. Se fazemos qualquer coisa, ou a fazemos refletidamente, ou a fazemos mecanicamente, em conformidade com o padrão de ontem, a tradição. Temos, portanto, de ver claramente qual é a função do pensamento. Se vos observais mui atentamente, não descobris que o pensamento é reação da memória, sendo essa memória experiência, conhecimento? Se não tivésseis nenhum conhecimento, nenhuma experiência, nenhuma memória, não haveria pensar. Estaríeis vivendo num estado de amnésia. O pensamento, como vimos, é reação da memória, e a memória está condicionada pela cultura em que viveis, pela educação que recebestes e a propaganda religiosa que vos foi instalada; o pensamento é reação da memória, isto é, do saber e da experiência nela acumulados. Necessitamos do conhecimento, da memória, para acharmos o caminho de casa, para falarmos uns com os outros, mas o pensamento, sendo reação da memória, nunca é livre, é sempre velho.

E o pensamento — essa reação do “velho”, da memória — é capaz de descobrir uma maneira de viver totalmente harmônica e clara? Todavia, queremos descobri-la por meio do pensamento ; digo: “pensarei nisso a fundo e descobrirei a maneira de viver harmonicamente”. E, já que o pensamento é reação do passado, de nosso condicionamento, não tem nenhuma possibilidade de descobrir a maneira harmoniosa de viver. Estais entendendo? O pensamento não pode descobri-la e, entretanto, usamos o pensamento para descobri-la. Bem sabemos que o pensamento é necessário, para podermos voltar para casa, para ganharmos a vida, para fazermos qualquer coisa; num certo nível, ele é absolutamente necessário, mas, quando se trata de descobrir uma maneira de viver diferente da atual — que é de desarmonia — o pensamento se torna um empecilho.

Ao perceberdes esta verdade, que o pensamento, por mais racional e lógico, por mais são e claro que seja, é incapaz de descobrir aquela maneira de vida, qual o estado de vossa mente? Estais-me acompanhando? estais trabalhando com o orador, ou estais meramente ouvindo palavras e ideias? Compreendeis esta pergunta? espero estejais trabalhando com igual ardor e empenho, porque, do contrário, nada descobrireis. E nós, que vivemos neste mundo insano, temos de descobrir uma nova maneira de viver. Ora, se o pensamento é incapaz de descobri-la, e compreendemos isso como um fato verdadeiro e não como uma explicação verbal, qual é então o estado da mente, da vossa mente? Qual é o estado da mente quando percebe um fato verdadeiro?* Não me respondais, por favor. Nunca vos deixais entranhar de uma verdade;não “ficais com ela”, mas estais sempre prontos a saltar com palavras e explicações, sabendo muito bem que a explicação não é a coisa real.

Perguntamos,  pois: Qual é o estado da mente que percebe a necessidade do pensamento e percebe também que o pensamento, por mais que se esforce, não pode de nenhum modo produzir aquela beleza de uma vida totalmente harmônica? Esta é uma das coisas mais difíceis de transmitir, um dos assuntos mais difíceis de tratar, porque até agora só temos vivido de experiências alheias, sem percepção direta; temos medo da percepção direta. E, diante deste desafio, vossa tendência é fugir, refugiar-vos em palavras e explicações; mas cumpre por de lado todas as espécies de explicação. Assim, qual o estado da mente, isto é, qual a natureza da mente que percebe a verdade? Por ora, deixemos de lado este ponto, porque não há tempo para entrarmos em pormenores e há ainda assuntos a tratar. A ele voltaremos.

(…) Ante o nosso sofrimento, tratamos de fugir, e as palavras, as teorias, as explicações e crenças nos oferecem os desejados meios de fuga. Se morre meu filho, tenho uma dúzia de explicações. Fujo, por medo à solidão. E que acontece? Torno a adormecer. Mas, o sofrimento é uma espécie de desafio. Se “ficardes” com ele, completamente, sem fugir, sem “verbalizar”, sem nenhum movimento de pensamento, descobrireis toda a sua estrutura.

E cumpre-vos, também, descobri, por vós mesmo, se o medo pode terminar — não apenas o medo físico, mas também os temores internos, psicológicos.

Que é o medo? É ele produto do pensamento? Obviamente, o medo resulta do pensamento. Pensais numa certa coisa que, ontem ou no ano passado, vos causou dor, física ou de outra espécie, e sentis medo; é desse modo que o pensamento nutre o medo e lhe dá continuidade. O pensamento projeta, também, o medo no futuro: posso perder meu emprego, minha posição, meus prestígio, minha reputação. Compreendeis? O pensar tanto no passado como no futuro gera medo. Por conseguinte, perguntamos: pode o pensamento cessar?

E note-se, ainda, que o pensamento sustenta o prazer. O pensar no prazer que ontem experimentei, contemplando o pôr do Sol — tão maravilhoso, tão belo, tão estimulante, etc. — sustenta aquele prazer.

Temos, pois, o sofrimento, o medo, o prazer e a alegria.

A alegria difere do prazer? Não sei se alguma vez a conhecestes. A alegria “acontece”, vem subitamente. Mas, não se sabe como, o pensamento dela se apodera e a reduz a prazer; e, assim, dizeis: “Quero experimentar de novo aquela alegria”. O pensamento, pois, sustenta e nutre o prazer, o medo, e dá continuidade ao sofrimento.

E, por fim, há o medo da morte, o medo fundamental do homem. Dele trataremos mais tarde.

Agora, ao perceberdes que o pensamento perpetua o prazer e o medo, e que evitar o medo, mediante diferentes formas de fuga, deforma a mente e, por conseguinte, a torna incapaz de compreender de todo o medo — qual o estado de vossa mente ao perceberdes esta verdade? E qual o estado da mente que sabe quando o pensamento é necessário, quando deve ser empregado, logicamente, objetivamente, equilibradamente, e sabe também que o pensamento, que é reação do conhecimento, ou seja, do passado, se torna um obstáculo a uma maneira de viver isenta de contradição? Qual o estado de vossa mente quando dizeis: “Compreendo”? Ela está completamente vazia e em silêncio. Não é exato isso? Só se pode ver uma coisa bem claramente quando não há escolha. Havendo escolha, há confusão. Só a mente confusa escolhe, discrimina entre o essencial e o não essencial; mas o homem que vê com clareza não faz escolha.

Há, pois, uma ação que vem quando a mente está vazia de todo o movimento de pensamento, exceto aquele movimento que é necessário quando o pensamento deve funcionar. A mente é então capaz de dar atenção aos fatos da vida diária. Mas, ela é capaz de funcionar dessa maneira se sois muçulmano, budista, hinduísta, e estais condicionado por esse fundo? Não é, evidentemente. Por conseguinte, se perceberdes esse fato, deixareis de ser muçulmano, cristão, e vos tornareis outra coisa bem diferente —  não algum dia, no futuro, mas agora, neste mesmo momento. De outro modo, jamais vereis a verdade. Sobre ela podereis falar interminavelmente, ler todos os livros do mundo, mas jamais alcançareis sua beleza e vitalidade. Assim, a mente que investiga, que faz perguntas fundamentais, indaga também se a sociedade pode ser transformada radicalmente, fundamentalmente — não sua estrutura econômica, mas sim, a estrutura psicológica. Porque, se a psique não for transformada, continuareis a fazer, exteriormente, as mesmas coisas — modificadas, talvez, mas sempre segundo o velho padrão.

Cabe-vos, pois, fazer esta pergunta fundamental; a ela ninguém pode responder senão vós mesmo. Não há confiar em ninguém. Deveis, portanto, observar e, observando, aprender. Assim, pode a mente manter-se completamente desperta, observando, a fim de ver a verdade relativa a qualquer coisa e, vendo-a, atuar — assim como atuais em presença de um perigo? Ao verdes um perigo, atuais instantaneamente. Do mesmo modo, ao verdes, por inteiro, a  verdade relativa a qualquer coisa, há ação imediata. 

Krishnamurti — Nova Deli, 13 de dezembro de 1970
Extraído do livro: O Novo Ente Humano – Ed. ICK

(*) A mente está vazia e em silêncio, conforme Krishnamurti explica mais adiante (Nota do tradutor)

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