sábado, 28 de maio de 2011

Sobre Deus

Falar de Deus, sem se experimentar, sem se ter uma mente de todo livre, e, portanto, aberta para o desconhecido, é coisa de mui pouca valia; é o mesmo que pessoas adultas se entreterem com brinquedos; e quando nos entretemos com brinquedos e chamamos a isso religião, estamos criando mais confusão, causando mais sofrimento. E só ao compreendermos todo o processo do pensar e dele nos libertarmos, pode a mente estar tranqüila; só então se manifesta o Eterno.

Autor: Krishnamurti - A mente e o medo

quinta-feira, 26 de maio de 2011

Conhecimento e Conflito nas Relações Humanas

Morte... talvez, aquilo o que chamamos de Deus


Quando a morte chega, ela não lhe pede permissão; ela vem e leva você; ela o destrói no local. Do mesmo modo, será que você consegue abandonar o ódio, a inveja, o orgulho das posses, o apego a crenças, a opiniões, a ideias, a determinado modo de pensar? Será que você consegue abandonar isso tudo num instante? Não existe um “como abandonar isso”, pois isso seria apenas outra forma de continuidade. Abandonar opiniões, crenças, avidez ou inveja, é morrer – morrer todos os dias, todos os momentos. Se houver o findar de toda ambição, de momento a momento, então você conhecerá o extraordinário estado de ser nada, de chegar ao abismo de um movimento eterno, por assim dizer, e cair borda abaixo – que é a morte.

Quero saber tudo sobre a morte, porque a morte pode ser a realidade; ela pode ser o que chamamos Deus – aquele algo extraordinário que vive e se move e, não obstante, não tem começo nem fim.

Krishnamurti - The Collected Works vol XI, p 242

Verdadeira Revolução

A crise atual é a maior de nossa vida, apesar das enormes mudanças que se estão verificando no mundo da ciência, da matemática, etc. Tecnicamente observa-se uma extraordinária mudança, ao passo que na psique do ente humano tem havido muito pouca alteração. A crise não é conseqüência do progresso técnico, porém, antes, de nossa maneira de pensar, de viver, de sentir. Aí que é se faz necessária a revolução. Essa revolução não pode realizar-se de acordo com um dado padrão, porque, psicologicamente, nenhuma revolução é possível pela mera imitação de uma dada ideologia. Para mim, todas as ideologias são absurdas sem nenhuma significação. O que tem significação é o que é, e não o que deveria ser.

Krishnamurti - A importância da Transformação

sábado, 21 de maio de 2011

O Outro

"O OUTRO"
Trechos onde K. fala deste Outro ("Otherness" ou "the Other")

"É muito difícil manter o contentamento puro, o descontentamento que diz: isso não é suficiente, deve haver algo mais.Nós todos conhecemos este sentimento, o sentimento do Outro que logo nós traduzimos como Deus, ou Nirvana - e lemos um livro sobre Ele e ficamos perdidos. Mas este sentimento do Outro, a busca, a indagação d'Ele - isto, eu penso, é o começo do impulso real de ser livre de todas as influências políticas, religiosas, tradicionais e abrir caminho através deste muro."
Poona, Índia, 21 de setembro de 1958.

"Para ter esta extraordinária, fresca e renovada sensação do Outro, a mente deve entender a si mesma. É por isso que é importante que haja um despertar de autoconhecimento mais profundo e abrangente."
Poona, Índia, 17 de julho de 1949.

"Se você está atento a todo este processo da mente, tanto o consciente quanto o inconsciente, se você realmente o vê e o entende, então descobrirá que a mente se torna extraordináriamente quieta sem qualquer esforço. A quietude que é produzida pela disciplina, pelo controle, é a quietude da morte, mas a quietude da qual estou falando vem sem esforço, quando se entende este processo todo da mente. Somente então há uma possibilidade de chegar a existir este Outro, que pode ser chamado Verdade ou Deus."
Madanapalle, 26 de fevereiro de 1956.

"Estando conscientes da monotonia de sua existência, percebo o aborrecimento (a exaustão, o cansaço) de suas múltiplas existências, a mente está sempre tentando capturar este outro estado; mas quando a pessoa vê que a mente é o conhecido, e que seja lá qual for o movimento que ela faça, nunca pode capturar este Outro, que é o desconhecido, então nosso problema não é como capturar o desconhecido, mas se a mente pode libertar-se do conhecido. Penso que este problema deve ser considerado por qualquer pessoa que queira descobrir se há uma possibilidade de vir a existir este outro estado, o desconhecido."
Madanapalle, 26 de fevereiro de 1956.

"Sem o Real, a vida se torna muito embotada, como o é agora para a maioria das pessoas; e estando nossas vidas embotadas, nos tornamos românticos, sentimentais a respeito deste outro estado, o Real."
Madanapalle, 26 de fevereiro de 1956.

"A Verdade, a Realidade ou este Outro, não tem ponto fixo - Ele obviamente não pode ser abordado por um caminho, mas deve ser descoberto de momento a momento."
Madanapalle, 26 de fevereiro de 1956.

"De sua parte você pode dizer que é isso ou aquilo, essa ou aquela qualidade, mas no momento em que acontece não houve verbalização, pois o cérebro estava totalmente quieto, sem nenhum movimento do pensamento. Mas o Outro (estado) não tem relacionamento com coisa alguma e todo pensamento e o ser é um processo de causa e efeito, e assim não havia entendimento ou relacionamento com ele. Era uma chama da qual se podia aproximar - e você só podia olhar para ela e manter-se à distância."
"O Diário de Krishnamurti", de 20 de outubro a 20 de novembro de 1961.

"Toda comparação, medida, pertence ao pensamento e assim ao tempo. O outro estado era a mente sem tempo; era a respiração da inocência e da imensidão."
"O Diário de Krishnamurti", de 20 de outubro a 20 de novembro de 1961.

"Este Outro não é algo extraordinário, não é alguma energia misteriosa, mas é misterioso no sentido de ser algo além do tempo e do pensamento. Uma mente que está presa no tempo e no pensamento nunca pode compreendê-lo. Deve haver morte e destriição total para ele existir; não a revolução das coisas exteriores, mas a destruição total do conhecido no qual todo refúgio e existência são cultivados. Deve haver vazio total e somente então este Outro, o que não tem tempo, surge. Mas este vazio não é para ser cultivado, não é resultado cuja causa possa ser comprada e vendida; nem é decorrência do tempo e do processo evolucionário; o tempo só pode gerar mais tempo."
"O Diário de Krishnamurti", de 20 de outubro a 20 de novembro de 1961.

"A meditação não é o caminho do esforço; todo esforço contradiz, resiste; esforço e escolha sempre criam conflito - e a meditação então se torna apenas uma fuga do fato, do que é. Mas andando naquela estrada, a meditação cedeu àquele Outro (outro estado), silenciando totalmente o cérebro que já estava quieto; o cérebro era apenas uma passagem para aquele imensurável; como um rio profundo e largo no meio de duas margens bem íngremes, este Outro estranho se movia, sem direção, sem tempo."
"O Diário de Krishnamurti", 06 de dezembro de 1961.

"A meditação continuava com aquela quietude e esta quietude era amor; não o amor de algo ou de alguém, a imagem e o símbolo, a palavra e as fotos. Era apenas amor, sem sentimento. Era completo em si mesmo, nu, intenso, sem raiz e direção. O som daquele pássaro ao longe era aquele amor; era a direção e a distância, estava lá sem tempo e palavra. Não era uma emoção, que se apaga e é cruel; o símbolo, a palavra podem ser substituídos - mas não a coisa. Sendo nu, Ele era completamente vulnerável e assim indestrutível. Ele tinha aquela força inacessível daquele outro estado, o desconhecido, que estava chegando através das árvores e além do mar. A meditação era o som daquele pássaro chamando deste vazio e o rugido do mar, fazendo um estrondo na praia."
"O Diário de Krishnamurti", 11 de dezembro de 1961.

"A meditação cedia ao outro estado; era de uma pureza abaladora. Sua pureza não deixava nenhum resíduo; estava lá, era tudo e nada existia."
"O Diário de Krishnamurti", 10 de outubro de 1961.

Descubram o que é aprender

Pela observação talvez se aprenda mais que dos livros. Livros são necessários para se aprender um assunto, seja matemática, geografia, história, física ou química. Nas páginas dos livros vem imprimido o conhecimento acumulado dos cientistas, dos filósofos, dos arqueologistas, etc. Esse conhecimento acumulado, que se aprende na escola, no colégio ou universidade - se a pessoa tem a sorte de ir para universidade -, tem sido acumulado através das idades desde os tempos muito antigos. Existe uma grande quantidade de conhecimento acumulado da Índia, do antigo Egito, Mesopotâmia, dos Gregos, dos Romanos e, naturalmente, dos Persas. No mundo ocidental, assim como no mundo oriental, esse conhecimento é necessário para se ter uma carreira, para se fazer qualquer trabalho, seja mecânico ou teórico, prático ou alguma coisa que a pessoa deve conceber, inventar. Esse conhecimento trouxe grande quantidade de tecnologia, especialmente no último século. Existe o conhecimento dos assim chamados livros sagrados, os Vedas, os Upanishades, a Bíblia, o Corão e as Escrituras Hebraicas. Assim existem os livros religiosos e os livros pragmáticos, livros que irão ajudar a pessoa a ter conhecimento, a ter habilidade, seja um engenheiro, um biólogo ou um carpinteiro.

A maioria das pessoas em quaisquer escolas, e particularmente nessas escolas, adquirem conhecimento, informação, e para isso é que as escolas têm existido até agora: para se adquirir uma grande quantidade de informação sobre o mundo lá fora, sobre os céus, por que o mar é salgado, por que as árvores crescem, sobre os seres humanos, sua anatomia, a estrutura do cérebro, etc. E também sobre o mundo ao redor, a natureza, o ambiente social, a economia e muito mais. Tal conhecimento é absolutamente necessário, mas o conhecimento é sempre limitado. Não importa quanto ele possa evoluir, adquirir conhecimento é sempre limitado. Aprender é parte do adquirir conhecimento sobre vários assuntos, de forma que a pessoa possa ter uma carreira, um trabalho que possa agradá-la, ou um trabalho que as circunstâncias, as exigências sociais a forçaram a aceitar, embora a pessoa possa não gostar muito daquele tipo de trabalho.

Como dissemos, aprendemos muito pelo observar, observar as coisas por perto, observar os pássaros, a árvore, observar os céus, as estrelas, a constelação de Orion, a Ursa Maior, a estrela Vespertina. Aprendemos apenas pelo observar, não somente as coisas ao redor, mas observando as pessoas, como elas caminham, seus gestos, as palavras que usam, como estão vestidas. Você não observa apenas o que está do lado de fora, mas observa a si mesmo, por que pensa isto ou aquilo, seu comportamento, como se conduz na vida cotidiana, por que os pais querem você que faça isso ou aquilo. Você está observando, não resistindo. Se resiste, você não aprende. Ou se você chega a algum tipo de conclusão, a alguma opinião que pensa que é correta e se agarra a isso, então, naturalmente, você nunca irá aprender. Liberdade é necessária para aprender, e curiosidade, um sentimento de querer saber por que você e os outros se comportam de uma certa maneira, por que as pessoas ficam bravas, por que você fica chateado.

Aprender é extraordinariamente importante porque o aprender não tem fim. Aprender por que os seres humanos se matam uns aos outros, por exemplo. Claro que existem explicações nos livros, todas as razões psicológicas por que os seres humanos se comportam de uma determinada maneira, por que os seres humanos são violentos. Tudo isso tem sido explicado em livros de todos os tipos por eminentes autores, psicólogos, etc. Mas o que você lê não é o que você é. O que você é, como se comporta, por que fica bravo, com inveja, por que fica deprimido, se você observa a si mesmo, aprende muito mais que dos livros que dizem o que você é. Mas veja, é mais fácil ler um livro sobre si mesmo que observar a si mesmo. O cérebro está acostumado a adquirir informação de todas as ações e reações externas. Não é muito mais confortável ser dirigido, que outras pessoas lhe digam o que deve ser feito? Seus pais, especialmente no Oriente, dizem com quem você deve se casar e arranjam o casamento, dizem que carreira você deve seguir. Assim o cérebro aceita o jeito mais fácil, mas o jeito mais fácil nem sempre é o jeito certo. Eu me pergunto se você notou que ninguém mais ama o trabalho que faz, exceto, talvez, uns poucos cientistas, artistas, arqueologistas. Mas a pessoa comum raramente ama o que está fazendo. Ela é compelida pela sociedade, pelos pais ou pelo impulso de ter mais dinheiro. Assim, aprenda observando muito, muito cuidadosamente o mundo externo, o mundo fora de você, e o mundo interior, ou seja, o seu próprio mundo

Parece que existem duas maneiras de aprender: uma é adquirindo uma grande quantidade de conhecimento, primeiro através dos estudos e então agindo a partir daquele conhecimento. Isso é o que a maioria das pessoas faz. A segunda é agir, fazer alguma coisa e aprender através do fazer, e isso também se torna acumulação de conhecimento. Realmente as duas maneiras são a mesma coisa: aprender de um livro ou adquirir conhecimento através da ação. Ambas são baseadas no conhecimento, na experiência e, como dissemos, experiência e conhecimento são sempre limitados.

Assim tanto o educador quanto o estudante deveriam descobrir o que é de fato aprender. Por exemplo, você aprende de um guru, se é um guru saudável, correto, e não um fazedor de dinheiro, não desses que querem ser famosos e correr o mundo para fazer fortuna através de suas teorias meio desequilibradas. Descubram o que é aprender. Hoje em dia aprender está se tornando mais e mais uma forma de entretenimento. Em algumas escolas ocidentais, quando eles acabam a escola primária, a escola secundária, os estudantes nem mesmo sabem ler ou escrever. E quando sabem ler e escrever e aprendem sobre vários assuntos, acabam sendo apenas pessoas medíocres. Sabem o que a palavra medíocre significa? O significado da raiz da palavra é ir até a metade da montanha, nunca atingindo o topo. Isso é mediocridade: nunca exigir a excelência, o ponto mais alto de si mesmo. E aprender é infinito, realmente não tem fim. Assim, de quem você está aprendendo? Dos livros? Do educador? E talvez, se a sua mente é brilhante, pelo observar? Até agora parece que você está aprendendo do que vem de fora: aprendendo, acumulando conhecimento e a partir desse conhecimento você está agindo, estabelecendo uma carreira e assim por diante. Se você está aprendendo de si mesmo - ou melhor, se você está aprendendo observando a si mesmo, seus preconceitos, suas conclusões definitivas, suas crenças, se você está observando as sutilezas do próprio pensamento, sua vulgaridade, sua sensibilidade, então você se torna o que ensina e o que é ensinado. Então você não depende de ninguém interiormente, de nenhum livro, de nenhum especialista - embora, é claro que se você está se sentindo mal com algum tipo de doença, você deve ir a um especialista, isso é natural, isso é necessário.

Mas depender de outra pessoa, não importa quão excelente ela seja, o impede de aprender sobre si mesmo e o que você é. E é muito, muito importante aprender o que você é, porque o que você é produz essa sociedade que é tão corrupta, imoral, onde a violência se espalha enormemente, essa sociedade que é tão agressiva, cada um buscando seu próprio sucesso, sua própria maneira de preenchimento. Aprender o que você é não através dos outros, mas pelo observar a si mesmo, sem condenar, sem dizer “Isto é assim mesmo, eu sou assim, não posso mudar” e continuar. Quando você observa a si mesmo sem nenhuma forma de reação, de resistência, então o próprio observar atua; como uma chama, ele queima toda a estupidez, todas as ilusões que a pessoa tem.

Assim, aprender se torna importante. Um cérebro que cessa de aprender se torna mecânico. É como um animal amarrado em uma estaca que pode se mover apenas de acordo com o comprimento da corda, a correia que está amarrada na estaca. A maioria de nós está amarrada a uma estaca peculiar de nós mesmos, uma estaca e uma corda invisíveis. Você se movimenta dentro das dimensões da corda e é muito limitado. É como um homem que fica pensando em si mesmo o dia inteiro, sobre seus problemas, seus desejos, seus prazeres e o que ele gostaria de fazer. É conhecida essa constante ocupação consigo mesmo. É muito, muito limitada. E essa própria limitação engendra várias formas de conflitos e infelicidades.

Os grandes poetas, pintores, compositores nunca estão satisfeitos com o que fizeram. Estão sempre aprendendo. Você não pára de aprender depois de passar nos exames e começar trabalhar. Existe grande força e vitalidade em aprender, especialmente sobre si mesmo. Aprender, observar a ponto de não haver nenhum lugar que não tenha sido descoberto, observado em si mesmo. Isso é realmente ser livre do seu próprio condicionamento particular. O mundo é dividido pelos condicionamentos: você como indiano, você como americano, você como inglês, russo, chinês, etc. A partir desse condicionamento existem as guerras, a matança de milhares de pessoas, a infelicidade e a brutalidade.

Assim, tanto o educador quanto quem está sendo educado estão aprendendo no sentido profundo dessa palavra. Quando ambos estão aprendendo, não existe nem educador nem alguém para ser educado. Existe apenas aprender. Aprender liberta o cérebro e o pensamento do prestígio, da posição, do status. Aprender traz igualdade entre os seres humanos.

(Carta extraída do livro de Krishnamurti “Letters to the Schools” vol II, pgs 74 – 80, escrita em 15/11/83)

A tragédia é que parece que a gente não se importa

Pergunta: Nós nos deparamos vivendo com medo da guerra, com medo de perder o emprego, se temos um, com medo do terrorismo, da violência de nossos filhos, com medo de estarmos à mercê de políticos ineptos. Como encarar a vida como ela é hoje?

Krishnamurti: Como você encara a vida? É certo que o mundo está se tornando mais e mais violento - isto é óbvio. As ameaças de guerra também são bem claras, como também é óbvio o estranhíssimo fenômeno de nossos filhos estarem se tornando violentos. Lembro-me de uma mãe que veio me ver na Índia faz algum tempo. Na tradição indiana as mães são consideradas com grande respeito, e essa mãe estava horrorizada porque, segundo o que disse, seu filho tinha lhe batido - uma coisa muito incomum na Índia. Assim essa violência está se espalhando por todo mundo. E tem esse medo de perder o emprego, como foi colocado. Deparando-se com tudo isso, sabendo disso tudo, como encarar a vida como ela é hoje?

Não sei. Sei como encará-la por mim mesmo, mas não sei como você o fará. Em primeiro lugar, o que é a vida, o que é essa coisa chamada existência, cheia de sofrimento, super-população, políticos ineptos, toda a malandragem, a desonestidade, o suborno que está acontecendo no mundo? Como lidamos com isso tudo? Certamente precisamos primeiro perguntar o que significa viver. O que significa viver nesse mundo do jeito que ele está? Como vivemos nossa vida diária, realmente, não teoricamente, não de forma filosófica ou idealizada, mas como vivemos de fato a nossa vida de todo dia? Se nós a examinarmos, ou ficarmos conscientes dela seriamente, ela é uma batalha constante, uma luta constante, um esforço após o outro. Ter que levantar-se de manhã é um esforço. Que iremos fazer? Não há possibilidade de escapar disso. Conhecíamos várias pessoas que diziam que o mundo era impossível de se viver, e eles se retiraram totalmente para algumas montanhas nos Himalaias e desapareceram. Isso é meramente uma fuga, um escapar da realidade, assim como o é perder-se em uma comunidade, ou associar-se a algum guru com muitas posses e se perder nisso. Obviamente, essas pessoas não resolveram os problemas da vida diária nem investigaram a respeito da mudança, da revolução psicológica de uma sociedade. Elas escaparam de tudo isso. E nós, se não escapamos e estamos realmente vivendo nesse mundo como ele é, que devemos fazer? Podemos mudar a nossa vida? Não ter nenhum conflito em nossa vida, porque conflito é parte da violência - isso é possível? Essa luta constante para ser alguma coisa é a base da nossa vida, de um esforço a outro. Podemos, como seres humanos, vivendo nesse mundo, mudarmos a nós mesmos? Essa é realmente a questão - transformarmos a nós mesmos radicalmente, psicologicamente, não depois, não admitindo tempo. Para um homem sério, um homem verdadeiramente religioso, não existe amanhã. Isso é uma sentença bem dura - que não existe amanhã; existe apenas a rica adoração do hoje. Podemos viver essa vida inteiramente - e realmente, na vida de cada dia, transformar o nosso relacionamento uns com os outros? Essa é a questão real, não o que é o mundo, pois o mundo é o que somos. Por favor, veja isso: o mundo é você e você é o mundo. Isso é um fato óbvio e terrível, um desafio que precisa ser encarado completamente - ou seja, perceber que somos o mundo com toda a sua fealdade, que contribuímos para tudo isso, que somos responsáveis por tudo isso, tudo o que está acontecendo no Oriente Médio, na África e toda a loucura que está acontecendo nesse mundo, nós somos responsáveis por ela. Podemos não ser responsáveis pelas ações de nossos avós e bisavós - a escravidão, milhares de guerras, a brutalidade dos impérios - mas somos parte disso. Se não sentirmos nossa responsabilidade, o que significa sermos totalmente responsáveis por nós mesmos, pelo que fazemos, o que pensamos, pela forma com que nos comportamos, então isso se torna bem desesperador, sabendo o que o mundo é, sabendo que não podemos individualmente, separadamente, resolver esse problema do terrorismo. Esse é problema dos governos, cuidar para que seus cidadãos estejam seguros, protegidos, mas eles não parecem se importar com isso. Se cada governo realmente estivesse preocupado em proteger seu próprio povo, não haveria guerras. Mas, pelo visto, os governos também perderam a sanidade, eles só estão interessados nos seus partidos políticos, no seu próprio poder, posição, prestígio - vocês sabem de tudo isso, do jogo todo.

Assim podemos, sem deixar entrar o tempo, ou seja o amanhã, o futuro, viver de tal forma que hoje é tudo que importa? Isso significa que temos que nos tornar extraordinariamente alertas às nossas reações, à nossa confusão - trabalharmos com todo ímpeto em nós mesmos. Parece que essa é a única coisa que podemos fazer. E se não o fizermos, realmente não há futuro para o homem. Não sei se vocês seguiram algumas das manchetes dos jornais - toda essa preparação para a guerra. E se você está se preparando para algo, você vai tê-lo - é como preparar um bom prato de comida. Parece que as pessoas comuns no mundo não se importam. Aqueles que intelectualmente, cientificamente, estão envolvidos na produção de armamentos, eles não se importam. Só estão interessados em suas próprias carreiras, nos seus empregos, na suas pesquisas; e aqueles de nós que são pessoas bem comuns, a chamada classe-média, se não nos importarmos de fato, então realmente estamos entregando os pontos. A tragédia é que parece que a gente não se importa. Nós não nos reunimos, não pensamos juntos, não trabalhamos juntos. A nossa disposição é só para participar de instituições, de organizações, na esperança que elas terminem com a guerra, com toda a carnificina mútua que fazemos. Elas nunca terminaram. As instituições, as organizações nunca vão terminar com isso. É o coração humano, a mente humana que está envolvida nisso. Por favor, não estamos falando teoricamente; estamos nos deparando com algo realmente bem perigoso. Nós nos encontramos com algumas das pessoas proeminentes que estão envolvidas com essa coisa toda e elas não estão nem aí, elas não se importam. Mas se nós nos importamos com isso, e nossa vida diária é vivida corretamente, se cada um de nós está atento ao que fazemos diariamente, então penso que há alguma esperança no futuro.

Krishnamurti - extraído do Boletim da KFT, número 46, de 1984

A OUTRA REALIDADE

A aurora chegava lentamente; as estrelas ainda brilhavam e as árvores ainda estavam recolhidas; nenhum pássaro piava, nem mesmo as pequenas corujas que voavam ruidosamente pela noite fora, de árvore em árvore. Estava tudo estranhamente silencioso, à excepção do bramido do mar. Sentia-se o aroma de muitas flores, das folhas em decomposição e do solo húmido; o ar estava muito calmo e o perfume estava em todo o lado. A terra esperava pelo amanhecer e pelo dia que chegava; havia expectativa, paciência e uma estranha serenidade. A meditação continuou com essa serenidade e essa serenidade era amor; não o amor de alguma coisa ou de alguém, nem das imagens ou dos símbolos, das palavras. Era simplesmente amor, sem sentimentalismo nem emocionalismo. Era algo completo em si mesmo, despojado, intenso, sem raiz, sem direcção. O som daquele pássaro longínquo era esse amor; ele era em si mesmo a direcção e a distância; estava ali sem tempo e sem palavras. Não era uma emoção que se desvanece e pode ser cruel; o símbolo, a palavra podem ser substituídos, mas não a coisa real. Sendo despojado, o amor era extremamente subtil e sem oferecer qualquer resistência, e por isso indestrutível. Tinha a força inatingível daquela outra realidade, o incognoscível, que chegava através das árvores e estava para além do mar. A meditação era o som daquele pássaro, um som nascido do vazio e era o bramido do mar espraiando-se sobre a areia. O amor só pode existir no vazio total. A aurora, ainda não iluminada, estava ainda longe no horizonte, e as árvores escuras estavam ainda mais escuras e cheias de intensidade. Na meditação não há nenhuma repetição, nenhuma continuidade do hábito; há a morte de todo o conhecido e o desabrochar do desconhecido. As estrelas tinham-se apagado e as nuvens despertavam com o Sol que chegava.

Krishnamurti's Notebook, Edit. Gollankz, Londres, 1976

Eliminação do Pensamento

Interlocutor: Gostaria de saber o que o senhor realmente quer dizer com a eliminação do pensamento. Falei com um amigo sobre isso e ele me disse que é uma tolice oriental. Para ele, o pensamento é a mais elevada forma de inteligência e ação - e é indispensável. Foi o pensamento que criou a civilização, e todos os relacionamentos são baseados nele. Todos aceitamos isso...Quando não pensamos, nós dormimos, temos uma vida vegetativa ou sonhamos acordados; ficamos vazios, lerdos e improdutivos, ao passo que, quando acordados estamos pensando, fazendo, vivendo, brigando: são esses os dois estados que conhecemos. O senhor diz : é preciso estar além de ambos - além, do pensamento e da inatividade vazia. O que quer dizer com isso ? “

Krishnamurti : É muito simples, o pensamento é a resposta da memória, do passado. Quando o pensamento age, é esse passado que está agindo como memória, como experiência, como conhecimento, como oportunidade. Quando o pensamento está funcionando, ele é o passado, portanto não há vida nova; é o passado vivendo no presente, modificando ele mesmo e o presente. Portanto, dessa maneira nada há de novo na vida, e para encontrar algo novo, o passado deve estar ausente, a mente não deve estar abarrotada de pensamentos, medo, prazer e tudo o mais. Somente quando a mente está em ordem, o novo pode surgir e, por essa razão, é que o pensamento deve ficar imóvel, operando apenas quando houver necessidade - de forma objetiva, eficiente. Toda continuidade é pensamento; quando há continuidade, nada há de novo. Percebe como isso é importante ? É de fato uma questão da própria vida. Ou você vive no passado, ou vive de uma forma totalmente diferente: esta é a questão.

Krishnamurti - A Urgência da Transformação - livro de Alain Naudé, edit. em 1970

segunda-feira, 16 de maio de 2011

SOBRE O SABER E A ESPECIALIZAÇÃO

SOBRE O SABER E A ESPECIALIZAÇÃO

O PROBLEMA do saber e da especialização parece-me muito importante. Consideremo-lo e vejamos se a mente, educada na especialização e no conhecimento pode ser livre para investigar e descobrir se nada mais existe além daquilo que lhe é conhecido; se pode perceber a onde o conhecimento nos está levando, e o significado da especialização.
Há muitos ramos do saber, e cada dia se põem ao nosso dispor, numa escala formidável, novos e copiosos conhecimentos. A onde nos está levando tudo isso? Qual é a função do saber? Vê-se que o saber está essencialmente num certo nível do nosso viver consciente ou inconsciente, da nossa existência. Pode esse saber ser um obstáculo à investigação mais profunda, à compreensão do inteiro significado da existência? Por exemplo, eu posso, como indivíduo, saber construir uma ponte. Pode esse conhecimento produzir uma mudança radical na minha maneira de pensar? O que ele pode produzir é uma modificação ou ajustamento superficial. Mas, que é necessário, na atual crise do mundo: um mero ajustamento superficial ou uma revolução radical? A mim me parece que a revolução nascida de qualquer sistema determinado de ação não é revolução, absolutamente, e que, se desejamos criar uma nova geração, com uma nova mentalidade, precisamos descobrir qual é a função do saber.
Que é o saber? — não estou pedindo o significado ou a definição do dicionário. O saber não significa cultivo da memória numa dada especialidade? Não significa o desenvolvimento da faculdade de acumular conhecimentos, para serem utilizados para um determinado fim? Sem a ciência, evidentemente, é quase impossível a existência moderna. Pode o saber, que é cultivo da memória, acumulação de conhecimentos e emprego desses conhecimentos para fins especiais — a cirurgia, a guerra, o desconhecimento de novos fatos científicos, etc., etc. — pode o saber constituir um obstáculo à perfeita compreensão da sociedade humana?
Como disse, o saber pode ser de notável utilidade num nível especial. Mas, se não compreendemos o processo total da existência humana, não será esse saber um obstáculo à paz humana? Por exemplo: temos suficientes conhecimentos científicos para dar alimentação e teto a toda a humanidade. Por que razão não se põe isso em prática? Não é um problema que interessa à maioria de nós? Não está este problema impedindo que se tome na devida consideração a questão do bom entendimento e da paz entre os homens?
Que é que impede a abolição da guerra, o fornecimento de alimentos, de roupas, de morada a todos os homens? Certamente não é o saber, e, sim, uma coisa de todo diferente. É o nacionalismo e os interesses de toda ordem – capitalistas, comunistas, ou de determinado grupo religioso — é tudo isso que está impedindo a união dos homens. A menos que haja uma transformação radical da nossa maneira de pensar, o saber continuará a ser utilizado para a destruição do homem. Que estão fazendo as nossas sapientes Universidades, acadêmicas e espirituais? Estão a produzir, a gerar, uma revolução fundamental em nossos corações e em nossas mentes? O ponto fundamental parece-me ser este e não a constante acumulação de mais conhecimentos e mais saber.
Pode realizar-se uma revolução total, mercê do conhecimento, que, afinal de contas, é o desenvolvimento contínuo da mente, por meio da memória? Posso conhecer muitos fatos, saber as distâncias entre os vários planetas, saber operar aviões a jato; mas esse saber, esses conhecimentos podem produzir uma mudança radical do meu pensar? Se não pode, que produzirá ele então? Este problema não interessa à maioria de nós? Queremos paz, neste mundo, queremos acabar com a inveja entre os indivíduos humanos, na sua busca de poder, desejamos pôr fim às guerras. Como consegui-lo?
A mera acumulação de conhecimentos pode acabar com as guerras, ou o que se necessita é uma revolução radical em nosso pensar? Pode, o pensar, produzir essa revolução? Não sei se já tendes considerado qual desses pontos; mas a mim me parece que uma revolução baseada em determinado padrão de pensamento não é revolução, em absoluto. Bem considerado, pensar é a reação a uma determinada condição, reação a um “desafio”, de acordo com um determinado “fundo” (background). Reajo ao desafio de acordo com meu condicionamento, meu próprio “fundo” (background): meu preparo, minha educação de cristão, hinduísta, muçulmano, etc. Como pode desaparecer esse “fundo”, esse condicionamento, esse peculiar padrão de ação, e nascer uma nova maneira de pensar? Não é um problema que interessa à maioria de nós? Por que nenhuma revolução radical é possível, a menos que se dê a quebra completa do condicionamento, do padrão do nosso pensar, orientado em determinado sentido.
O saber, a acumulação de conhecimentos sobre fatos, pode produzir a quebra do meu condicionamento? Entretanto, é isto o que estamos fazendo; cuidamos tão-somente de acumular conhecimentos, saber, de exercitar a memória. Isso é importante, no seu nível próprio. Pode-se conhecer ou, buscar pela investigação, obter conhecimentos relativos à consciência total do homem pelo método psicológico de auto-revelação — quase todo ele intelectual, verbal — ou seja, pela especialização. Pode isso, porém, produzir a transformação fundamental? Eu acho que a mera instrução e saber não pode operar nenhuma transformação radical. Deve haver um outro fator totalmente diverso; e esse fator é a compreensão do processo da consciência, do processo da mente, sempre a acumular, a entesourar conhecimentos.
Porque vivemos acumulando conhecimentos? Fazemo-lo para alcançar a segurança, que aliás é essencial num nível da nossa existência. Pensam alguns que o conhecimento é meio de descobrimento. Pode-se descobrir com o conhecimento? O conhecimento não impede o descobrimento? Como pode a mente descobrir coisas novas, se, na sua totalidade, ela só está preparada para juntar conhecimentos, saber? Não deve a mente examinar esta questão, sem estar ancorada em coisa alguma, em nenhuma crença, nenhum conhecimento? A mente que possui conhecimentos, que possui saber, deve ficar livre deles, para que possa descobrir; do contrário, nada descobrirá.
Afinal, em todos nós há um conflito entre o consciente e o inconsciente, entre os hábitos superficiais de pensamento e o processo oculto, dos “motivos”, dos desejos, das ansiedades e temores. Estamos acumulando conhecimentos e saber, no nível superficial, sem alterarmos fundamentalmente os níveis mais profundos da nossa consciência. A coisa mais importante, na crise atual, é que a revolução se realize no nível inconsciente, e não meramente no nível consciente. É impossível a revolução no nível inconsciente quando o consciente não faz outra coisa, senão cultivar a memória. Não é este o problema de todos nós, i. é., como produzir uma revolução profunda em nós mesmos?
O indivíduo, afinal de contas, é o homem; o resto do mundo não é diferente de vós nem de mim; e é só o indivíduo quem pode produzir a transformação radical. Mostra a História que foram sempre uns poucos indivíduos, diferentes dos outros na sua conduta de vida, que operaram modificações na sociedade.
A não ser que, individualmente, nos transformemos profundamente, fundamentalmente, nenhuma possibilidade vejo de se ter a paz, a tranqüilidade no mundo.
Como pode o indivíduo — vós e eu — transformar-se radicalmente, no profundo nível inconsciente? — exeqüível isso pela prática de um ideal ou virtude? O cultivo de determinada virtude não tem por efeito, meramente, tornar mais forte aquela consciência que está nutrindo o processo acumulativo da memória, tornar mais forte o “eu”, o “ego”? A prática de uma idéia ou ideologia não é também uma forma de fortalecer o “eu”, o “ego”, com o inevitável conflito interior e exterior, que é a causa fundamental de todas as guerras?
Pode haver revolução no “eu” pela ação da vontade? Não sei se já exercitastes a vossa vontade com o fim de produzir modificação. Se o fizestes, deveis ter notado que a ação do “eu” está sempre no nível consciente e nunca no nível inconsciente; mas a simples alteração ou exercício da vontade no nível consciente jamais produzirá revolução alguma, alteração, transformação radical de nossos hábitos de pensamento. Não é, pois, importante investigarmos, cada um de nós, como a mente funciona; investigar não de acordo com uma dada filosofia, mas observando as “maneiras” da nossa mente em ação, o nosso comportamento na vida, para que, com a compreensão da mente superficial, possamos descer abaixo da superfície e compreender a mente total?
Como disse no domingo passado, a menos que se produza a integração do pensador e do pensamento, o pensador se servirá do pensamento, da razão, da filosofia, da acumulação de saber, como meio de engrandecimento individual ou coletivo, ou como instrumento de propaganda de uma dada ideologia. Muito importa, pois, que todos aqueles que sentem muito interesse por estas questões, descubram o modo de realizar a total integração do homem. Isso, obviamente, não se pode fazer mediante qualquer forma de compulsão ou persuasão, nem mediante processos disciplinares, nem pela ação da vontade; porque tudo isso — se observarmos bem — se acha no nível superficial. Nosso problema é então este: como poderá realizar-se a transformação total do nosso ser? Já o tentamos por meio da autoridade, da compulsão, do ajustamento, da imitação. Se compreendermos a verdade relativa à compulsão, à disciplina, à imitação ou ajustamento, a mente superficial se tornará livre desses processos compulsórios e imitativos e se tornará tranqüila. Então todos os processos inconscientes poderão projetar-se na mente consciente; e, nessa projeção, temos a possibilidade de descobri-los, compreendê-los e libertar-nos deles.
Sempre que há compreensão dos fatos profundos da vida, a mente está, invariavelmente, tranqüila; não está fazendo esforço algum para compreender. E só quando a mente está de todo tranqüila, se oferece a possibilidade de uma compreensão capaz de operar a revolução radical em nossa vida.
Krishnamurti – Debates sobre educação com alunos e professores em Banaras, Índia – 1954


SOBRE O SUICÍDIO

SOBRE O SUICÍDIO

            PERGUNTA: Tenho desejo de suicidar-me; a vida não tem finalidade nem significação alguma. Para qualquer lado que olhe, não vejo senão desespero, sofrimento e ódio. Por que devo continuar a viver neste mundo monstruoso?
            KRISHNAMURTI: Por que uma pessoa se suicida? Não há diferentes maneiras de nos suicidarmos? Não vos suicidais, quando vos identificais com vossa pátria? Não vos suicidais, ao vos tornardes membro de um partido, ao ingressardes numa seita? Não vos suicidais quando credes em alguma coisa? Isto é, entregai-vos de corpo e alma a algo que é “maior”; essa coisa “maior” é vossa “projeção” daquilo que pensais deveríeis ser; a identificação de vós mesmo com uma coisa maior (e essa coisa maior é o vosso desejo de algo mais digno) é uma maneira de nos suicidarmos. Escutai isso; não o rejeiteis, Senhores.
            Muitos de vós estais identificados com este país; estivestes na prisão, tendes lutado. Não vos suicidastes por uma causa muito insignificante? Outro se suicida por não mais ter crença; tornou-se cínico, toda a sua vida intelectual levou-o, apenas ao desespero e ao sofrimento, e por isso ele se suicida. O homem que crê e o homem que não crê, tanto um como outro se suicidaram, cada um à sua maneira, visto que todos dois querem fugir de si mesmos. Querem fugir, servindo-lhes de fuga a pátria, a idéia do nacionalismo, a idéia de Deus; e quando Deus e o nacionalismo falham, ou quando falha a pátria ou o ideal que ela representa, esses homens se vêem na escuridão. E, também, quando qualquer de nós depende de um amigo ou depende da pessoa amada, se nos tiram esse arrimo, vemo-nos de novo à beira do precipício e dispostos a dar o salto na treva. Dessarte, todos nós — pela identificação com algo que é “maior”, pela crença, e por várias outras maneiras de fuga, procuramos evitar a nós mesmos; e quando tornamos a cair em nós mesmos, vemo-nos perdidos, sós, desesperados. E estamos prontos a suicidar-nos. Tal é a nossa condição, não achais? Uma pessoa que amais vos abandona, e sentis ciúmes; revela-se-vos a vacuidade da vossa mente e do vosso coração e ficais aterrado; e, conseqüentemente, estais disposto a abrigar-vos num novo refúgio; e assim por diante.
            Assim, pois, enquanto não compreendermos a nós mesmos, achar-nos-emos sempre na orla da escuridão. Dizemos que o mundo é horrível, que o mundo é miserável. O mundo, porém, é uma coisa que nós criamos, o mundo são as nossas relações com outro. Se nessas relações há dependência, então tem de haver temor, frustração, desilusão; e daí, o desejo de suicídio Todavia se tendes uma crença muito forte, ela vos contém; e essa crença mesma condiciona-vos a mente, conscientemente, de modo que não vedes a necessidade de exame interior; essa crença atua ela própria como meio de fuga. Quanto mais religiosa uma pessoa, tanto menor a inclinação para o suicídio.
            Quanto mais indagais, quanto mais investigais, tanto maior se vos torna o medo de conhecer intimamente a vacuidade de vossa solidão. Mas, não deveis olhar de frente esse vazio, sem estardes amparado em alguma coisa? Não deveis pôr-vos no estado em que vos vedes completamente só, e compreender esse estado? Não deveis vêr-vos só, para achardes aquilo que “é só”, aquilo que não está contaminado, que nunca foi pensado? Não podeis, porém, alcançar esse “estado de só”, se tendes medo da solidão. Quase todos temos medo de olhar-nos a nós mesmos, e temos por esta razão muitas vias de fuga; e quando se mostram improfícuas essas vias, tornamos a cair em nós mesmos. É este o momento oportuno para nos examinarmos interiormente; temos de compreender esse vazio, e não fugir-lhe da presença, por meio de ritos, de distrações de qualquer espécie, do saber ou da crença.
            Só podeis examinar esse vazio quando a vossa mente nele se absorve por inteiro, quando tomais conhecimento dele sem nenhuma tendência a traduzi-lo e sem desejardes que ele se modifique – e isso é coisa muito difícil. Visto sermos em geral, muito preguiçosos, preferimos refugiar-nos numa crença qualquer ou suicidar-nos. Assim, pois, é só quando uma pessoa compreende o que significa a solidão e a ela se sujeita, aí, somente, essa pessoa se purifica para “ser só”; e apenas essa solidão pode achar aquilo que é o ser, onde não existe o “eu”, com todas as suas lutas, contradições e confusões.

Krishnamurti – AUTOCONHECIMENTO – BASE DA SABEDORIA – 18 de fevereiro de 1953 

SÔBRE O TÉDIO E O INTERESSE

SÔBRE O TÉDIO E O INTERESSE


            PERGUNTA: Não tenho interesse por coisa alguma, mas a maioria das pessoas está sempre ocupada em numerosos interesses. Não preciso trabalhar, portanto não trabalho. Devo emprender algum trabalho útil?

            KRISHNAMURTI: Tornar-vos um obreiro social, ou um obreiro político, ou um obreiro religioso — não é isso? Como não tendes mais o que fazer, vos tomais reformador! Se nada tendes que fazer, se estais enfadado, por que não ficais enfadado? Por que não ficar assim? Se sentis tristeza, ficai triste. Não procureis uma saída, porque o fato de estardes enfadado tem imensa significação, se fordes capaz de o compreender, de viver com ele. Se dizeis: “Sinto tédio, e, por isso, farei qualquer outra coisa”, estais apenas procurando fugir ao tédio e, como a maioria de nossas atividades são fugas, causais muito mais malefício, socialmente e a todos os outros respeitos. É muito maior o malefício, quando fugis ao fato, do que quando permaneceis com ele. A dificuldade consiste em como permanecer com o fato, sem fugir dele. Visto que a maioria de nossas atividades constituem um processo de fuga, é dificílimo desistirmos de fugir e encararmos o fato. Por conseguinte, folgo muito em saber que vos sentis verdadeiramente enfadado, e digo-vos: “Alto! Fiquemos aqui; vamos ver o que é isto. Por que fazer alguma coisa?”
            Se estais enfadado, por que estais enfadado? Que coisa é essa que se chama tédio? Por que não tendes interesse por coisa alguma? Há de haver razões e causas que vos embotaram: sofrimentos, fugas, crenças, atividades incessantes vos embotaram a mente e tornaram inflexível o vosso coração. Se pudésseis descobrir por que tendes tédio, por que não sentis interesse por coisa alguma, então, por certo, resolveríeis o problema, não é verdade? O interesse despertado, passaria a funcionar. Se não vos interessa saber a razão por que estais enfadado, não podeis forçar-vos a sentir interesse por uma atividade, só para fazer alguma coisa, como um esquilo que dá voltas na gaiola. Sei que é esta a espécie de atividade a que se entrega a maioria de nós. Mas podemos descobrir, interiormente, psicologicamente a razão por que nos achamos neste estado extremo de tédio; pode-se ver por que a maioria de nós se acha neste estado: estamos esgotados, emocional e mentalmente; temos tentado tantas coisas, tantas sensações, tantos divertimentos, tantas experiências, que nos tornamos embotados, cansados. Aderimos a um grupo, fazemos tudo o que se nos prescreve, e depois o deixamos; passamos a outra coisa, para experimentar. Se não obtemos resultados com um psicólogo, procuramos outra pessoa ou um sacerdote e, se de novo somos mal sucedidos, passamos a outro instrutor, e assim por diante; estamos sempre em movimento. Esse processo de constante tensão e relaxamento é exaustivo, não achais? Como todas as sensações, não tarda a embotar a mente.
            Temos feito isso, passado de sensação para sensação, de excitação para excitação, até chegarmos a um ponto em que nos vemos verdadeiramente exaustos. Agora, percebendo isso, não empreendais mais nada; descansai! Ficai quieto! Deixai a mente ganhar forças por si mesma; não a forceis. Assim como o solo se renova durante o inverno, assim também, quando deixamos a mente em repouso, ela se renova. É muito difícil, porém, deixar a mente em repouso, dar-lhe folga, depois de tudo isso, porque a mente quer estar sempre fazendo alguma coisa. Quando atingís o ponto em que realmente vos permitís ser exatamente como sois — enfadado, feio, repelente, ou o que for — então há possibilidade de fazer alguma coisa com relação ao fato.
            Que acontece quando aceitais uma coisa, quando aceitais aquilo que sois realmente? Quando admítis que sois o que sois, que é do problema? Só há problema quando não aceitamos uma coisa tal como é e desejamos transformá-la — o que não significa que eu esteja advogando a resignação, a conformidade. Ao contrário, se aceitamos o que somos, vemos então que a coisa que nos fazia medo, a coisa a que chamávamos tédio, a coisa a que chamávamos desespero, a coisa a que chamávamos medo, passou por completa transformação, Há uma transformação completa da coisa que temíamos.
            Eis por que é importante, como disse, que compreendamos o processo, as maneiras do nosso pensar. O autoconhecimento não pode ser aprendido de outra pessoa, aprendido de um livro, de um credo, de uma psicologia, ou de um psicanalista. Ele tem de ser achado por vós mesmos, porque ele é vossa vida. Não ampliando e aprofundando esse conhecimento do ‘eu”, podeis fazer o que quiserdes, alterar quaisquer circunstâncias ou influências exteriores ou interiores haverá sempre o campo de cultura do desespero, da dor e do sofrimento. Para transcender as atividades egocêntricas da mente, deveis compreendê-las. E compreendê-las, é estar cônscio da ação nas relações, nas relações com coisas, com pessoas e com idéias. Nessas relações, que são o espelho, começamos a ver-nos a nós mesmos, sem nenhuma justificação ou censura e desse conhecimento mais amplo e mais profundo das tendências da nossa mente, podemos avançar mais além, sendo então possível estar a mente quieta, receber o real.

Krishnamurti – A Primeira e Última Liberdade

SOBRE O VAZIO EXISTÊNCIAL

SOBRE O VAZIO EXISTÊNCIAL

Bombaim, 12 de Fevereiro de 1950
           
            O nosso problema está no fato de a nossa vida ser vazia e de não conhecermos o amor; conhecemos sensações, conhecemos a publicidade, conhecemos exigências sexuais, mas não há amor. E como se faz para transformar esse vazio, como encontrar essa chama sem fumaça? Esta é por certo a pergunta, não é? Então, vamos descobrir juntos a verdade desse assunto.
            Por que a nossa vida é vazia? Embora sejamos muito ativos, embora escrevamos livros e freqüentemos o cinema, embora nos divirtamos, amemos e vamos ao escritório, nossa vida é vazia, tediosa, mera rotina. Por que os nossos relacionamentos são tão superficiais, estéreis e sem muito sentido? Conhecemos a nossa vida suficientemente bem para saber que a nossa existência tem muito pouco significado; citamos frases e idéias que aprendemos — o que fulano ou beltrano disseram, o que os mahatmas, os santos mais recentes ou os antigos santos disseram. Se não for um líder religioso, seguimos um líder político ou intelectual, seja Marx, Adler ou Cristo. Somos apenas fitas gravadas que repetem, e damos a esse repetição o nome de conhecimento. Aprendemos, repetimos, e a nossa vida continua extremamente superficial, entediante e repulsiva. Por quê? Por que é assim? Por que atribuímos tanta importância às coisas da mente? Por que a mente veio a se tornar tão importante na nossa vida — quando digo mente refiro-me às idéias, ao pensamento, à capacidade de racionalizar, de avaliar, de sopesar, de calcular? Por que damos uma ênfase tão extraordinária à mente? O que não significa que devamos nos tornar emotivos, sentimentais e melosos. Conhecemos esse vazio, esse extraordinário sentimento de frustração. Por que há na nossa vida essa vasta superficialidade, esse sentimento de negação? Não há dúvida de que só podemos compreendê-lo quando o abordamos por meio da consciência do relacionamento.
            O que de fato está acontecendo nos nossos relacionamentos? Nossos relacionamentos não constituem um auto-isolamento? Não são todas as atividades da mente um processo de salvaguarda, de busca de segurança, de isolamento? Não é esse pensamento, que dizemos ser coletivo, um processo de isolamento? Não é toda ação da nossa vida um processo de auto-encerramento? Vocês podem vê-lo na sua vida diária. A família tornou-se um processo de auto-isolamento e, sendo isolada, deve existir em oposição. Assim, todas as nossas ações estão levando ao auto-isolamento, que cria essa sensação de vazio; e, sendo vazios, procuramos preencher o vazio com rádios, com barulho, com tagarelices, com fofocas, com a leitura, com a aquisição de conhecimento, com a respeitabilidade, o dinheiro, a posição social e por aí afora. Mas tudo isso é parte do processo de isolamento e, portanto, apenas reforça o isolamento. Assim, para a maioria de nós, a vida é um processo de isolamento, de negação, de resistência, de ajustamento a um padrão; e, naturalmente, nesse processo não há vida, havendo, por conseguinte, uma sensação de vacuidade, uma sensação de frustração. Claro que amar alguém é estar em comunhão com essa pessoa, não num determinado grau, mas completa, integral e profusamente; porém, nós não conhecemos esse amor. Só conhecemos o amor como sensação — os meus filhos, a minha mulher, a minha propriedade, o meu conhecimento, a minha realização; e isso é novamente um processo de isolamento. A nossa vida, em todas as direções, leva à exclusão; ela é um impulso de auto-isolamento da parte do pensamento e do sentimento; às vezes conseguimos nos comunicar com o outro. Eis por que existe esse enorme problema.
            Ora, esse é o estado atual da nossa vida — respeitabilidade, posse e vazio — e a pergunta é como proceder para irmos além dele. Como ir além dessa solidão, desse vazio, dessa insuficiência, dessa pobreza interior? A meu ver, a maioria de nós não deseja fazê-lo. A maioria de nós fica satisfeita com a maneira como é; é muito cansativo descobrir uma coisa nova, e por isso preferimos permanecer como estamos — e aí reside a verdadeira dificuldade. Temos muitas coisas que nos dão segurança; construímos paredes ao redor de nós mesmos, com as quais estamos satisfeitos e, ocasionalmente, há um murmúrio vindo de além da parede; há de vez em quando um terremoto, uma revolução, uma perturbação que logo neutralizamos. Desse modo, a maioria de nós na realidade não quer ir além do processo de auto-isolamento; tudo o que procuramos é um sucedâneo, a mesma coisa numa outra forma. Nossa insatisfação é bem superficial; queremos uma coisa nova que nos satisfaça, uma nova segurança, uma nova maneira de nos proteger — o que é, mais uma vez, o processo de isolamento. O que estamos procurando, a bem dizer, não é ir além do isolamento, mas reforçá-lo de modo que ele venha a ser permanente e livre de interferências. São poucos os que desejam derrubar as barreiras e ver o que existe para além disso que chamamos de vacuidade, solidão. Aqueles que buscam um sucedâneo para o antigo ficarão satisfeitos ao descobrir algo que proporcione uma nova segurança, mas há evidentemente quem queira ir além disso; por isso, prossigamos com eles.
            Ora, para ir além da solidão, do vazio, é preciso compreender todo o processo da mente. O que é isto que chamamos de solidão, de vazio? Como sabemos que é vazio, que é solidão? A partir de que critério vocês dizem que é isto e não aquilo? Quando vocês dizem que é solidão, que é vazio, qual é a referência? Vocês só podem sabê-lo a partir das medidas proporcionadas pelo antigo. Vocês dizem que algo é vazio, vocês o nomeiam, e julgam tê-lo compreendido. Não será o próprio ato de nomear um empecilho à sua compreensão? A maioria de nós sabe o que é a solidão, da qual estamos tentando escapar. A maioria de nós tem consciência dessa pobreza interior, dessa insuficiência interior. Não se trata de uma reação abortiva, mas de um fato; e ao lhe dar um nome não o podemos dissolver — ele está presente. Ora, como conhecemos seu conteúdo, como chegamos a saber qual é a sua natureza? Vocês conhecem alguma coisa por lhe dar um nome? Vocês me conhecem ao me chamar por um nome? Vocês só podem me conhecer quando me observam, quando têm comunhão comigo,
mas chamar-me por um nome, dizer que sou isso ou aquilo, obviamente põe fim à comunhão comigo. De modo semelhante, para se conhecer a natureza daquilo que denominamos solidão, tem de haver comunhão com ela, e a comunhão não é possível se vocês a nomeiam. Para compreender alguma coisa, é preciso antes de tudo fazer cessar o ato de nomear. Se desejam de fato entender seu filho — o que eu duvido — o que vocês fazem? Vocês olham para ele, observam-no a brincar, contemplam-no, estudam-no. Em outras palavras, vocês amam aquilo que desejam compreender. Quando vocês amam alguma coisa, há naturalmente comunhão com essa coisa, mas o amor não é uma palavra, um nome, um pensamento. Vocês não podem amar aquilo a que dão o nome de solidão porque não têm plena consciência dela, porque a abordam com medo — não medo da solidão, mas de outra coisa. Vocês não pensaram sobre a solidão porque não sabem de fato o que ela é. Não riam; isto não é um argumento inteligente. Pensem bem no assunto enquanto falamos e verão todo o seu alcance.
            Logo, aquilo que denominamos o vazio é um processo de iso lamento que é o produto do relacionamento cotidiano, porque, no relacionamento, consciente ou inconscientemente, estamos procurando a exclusão. Vocês querem ser o proprietário exclusivo daquilo que lhes pertence, da mulher ou do marido, dos filhos; querem caracterizar a coisa ou pessoa como meu, o que evidentemente significa aquisição exclusiva. Esse processo de exclusão deve inevitavelmente levar a um sentimento de isolamento; e como nada pode viver em isolamento, há conflito, e estamos tentando escapar desse conflito. Todas as formas de fuga que podemos conceber — as atividades sociais, a bebida, a busca de Deus, a puja, a realização de cerimônias, a dança e outras diversões — estão no mesmo nível: e se vemos na vida diária esse processo total de fuga do conflito e queremos suplantá-lo, temos de compreender o relacionamento. Só quando a mente não está escapando de nenhuma maneira é possível estar em comunhão direta com aquilo a que damos o nome de solidão: o só; e para haver comunhão com isso, tem de haver afeição, tem de haver amor. Em outras palavras, vocês têm de amar a coisa para compreendê-la. O amor é a única revolução, e o amor não é uma teoria nem uma idéia; ele não segue nenhum livro nem padrão de comportamento social.
            Logo, a solução do problema não vai ser encontrada nas teorias, que servem somente para aumentar o isolamento. Ela só será encontrada quando a mente, que é pensamento, não estiver empenhando em fugir da solidão. A fuga é um processo de isolamento, e a verdade é que só pode haver comunhão quando há amor. Só então é resolvido o problema da solidão.

KRISHNAMURTI – SOBRE O AMOR E A SOLIDÃO - CULTRIX

SOBRE SOLIDÃO

SOBRE SOLIDÃO 


            Sabeis o que significa a solidão, estais cônscio dela? Duvido muito, porque todos nós vivemos mergulhados em nossas atividades, nos livros, relações, idéias, que nos impedem de estar cônscios da solidão. Que se entende por solidão? Uma sensação de estar vazio, de nada ter, de extraordinária incerteza, de não se estar ancorado em coisa alguma. Não é desespero, nem desesperança, mas um sentimento de vácuo, de vazio, de frustração. Todos nós, por certo, conhecemo-lo; os ditosos e os desditosos, os que trabalham muito e os que estudam muito — todos o conhecem. A sensação de uma dor real e persistente, dor que não pode ser abafada, por mais que tentemos abafá-la.
            Acerquemo-nos mais uma vez deste problema, para vermos o que de fato ocorre, o que fazemos, quando nos sentimos sós. Procurais fugir ao vosso sentimento de solidão; tentais prosseguir, engolfando-vos num livro, seguindo um guia, indo ao cinema, cooperando diligentemente em obras sociais, ou pintando, ou praticando devoções e rezas ou escrevendo um poema sobre a solidão. Isso o que de fato se passa. Tornando-vos cônscios da solidão, da dor que ela causa, do temor extraordinário e insondável que a acompanha, buscais um meio de fuga, e este meio de fuga se torna mais importante do que tudo, sendo por isso que vossas atividades, vosso saber, vossos deuses, vossos rádios são tão importantes, não é verdade? Quando se dá importância a valores secundários, eles nos conduzem ao sofrimento e ao caos; os valores secundários são, necessariamente, valores dos sentidos; a civilização moderna, baseada que está nestes valores, proporciona-nos esses meios de fuga — fuga através de nossas ocupações, família, nome, estudos, a arte, etc.; toda nossa civilização está baseada nesta fuga, alicerçada nesta fuga. Isto é um fato.
            Já tentastes alguma vez estar sós? Se o tentardes, vereis como isso é extraordinariamente difícil e quão inteligentes precisamos ser, para podermos estar sós, porquanto a mente não nos deixa estar sós. A mente se inquieta, recorrendo aos costumeiros meios de fuga, e, por conseguinte, que estamos fazendo? Estamos procurando preencher este vazio extraordinário com o conhecido. Achamos meios de estar ativos, de trabalhar para o bem-estar social. Estudamos. Ligamos o rádio. Estamos enchendo aquela coisa que não conhecemos, com as coisas que conhecemos. Tentamos preencher o vazio com conhecimentos variados, relações, coisas de toda ordem. Não é exato isso? É assim que funcionamos, assim que existimos. Ora bem, depois de reconhecerdes o que estais fazendo, pensais ainda que se pode encher aquele vazio? Já tentastes todos os meios de preencher o vazio da solidão. Conseguistes preenchê-lo? Tentastes o cinema, infrutiferamente, e agora saís no encalço dos gurus, ou vos entregais aos livros, ou vos tornais muito ativos, socialmente. Conseguistes preencher o vazio, ou apenas o tapastes? Se o tapastes apenas, ele continua a existir, e portanto, voltará. Se conseguis escapar-lhe de todo, sois trancados num hospício ou vos tornais extremamente embotados. É isso que está acontecendo no mundo.
            Pode esse vazio, esse vácuo, ser preenchido? Se não, pode-se fugir dele, escapar-lhe? Se já experimentamos um meio de fuga e vimos que é sem valor, todos os outros meios de fuga não são também sem valor? Não importa que preenchais o vazio com isto ou com aquilo. A chamada meditação é também uma forma de fuga. Pouco adianta mudar o meio de fuga.
            Como então, descobrir o que se deve fazer a respeito da solidão? Isso só se pode descobrir quando desistis de fugir, não achais? Quando estais dispostos a fazer frente ao que é — o que significa que não deveis ligar vosso rádio, o que significa que deveis voltar às costas à civilização — então a solidão chega ao seu fim, porque se transformou completamente; já não é solidão. Se compreendeis o que é, o que é, então, é o real. Porque está sempre ocupada em evitar, em fugir, em recusar-se a ver o que é, a mente cria seus próprios obstáculos. Temos tantos obstáculos que nos impedem de ver, que não compreendemos o que é e fugimos, por isso, da realidade. Todos esses obstáculos foram criados pela mente, para não ver o que é. Para ver o que é, torna-se necessária não só muita capacidade e muita vigilância de ação, mas, também, que volteis as costas a todas as coisas que construístes, ao vosso depósito no banco, ao vosso nome, e a tudo o que chamamos civilização. Quando se vê o que é, a solidão se transforma.

Krishnamurti – A Primeira e a Última Liberdade – Ed. Cultrix


SOBRE TRABALHO, EMPREGO E ROTINA.

SOBRE TRABALHO, EMPREGO E ROTINA.

PERGUNTA: Falais tanto na necessidade de incessante vigilância. Mas o meu trabalho me embota de maneira tão irresistível, que falar de vigilância após um dia de labor, é o mesmo que deitar sal numa ferida.

KRISHNAMURTI: Senhor, esta questão é importante. Se vos apraz, vamos examiná-la com toda a atenção, para ver o que ela implica. Pois bem, a maioria de nós se embota nisso que se chama trabalho, emprego, rotina. Os que amam o trabalho e os que são forçados a trabalhar por necessidade — tanto uns como outros estão embotados. Tanto os que amam o trabalho como os que a ele resistem são homens embotados, não é verdade? Quando um homem ama o seu trabalho, que faz ele? Pensa nele da manhã à noite, está constantemente ocupado com ele. Tão identificado se acha com o seu trabalho que não pode vê-lo objetivamente: ele próprio é a ação, o trabalho; e a uma pessoa em tais condições que acontece? Vive numa gaiola, vive isolado no seu trabalho. Nesse isolamento pode ele ser muito proficiente, muito inventivo, muito sutil, mas, sem embargo, está isolado; e se torna embotado, porque está resistindo a qualquer outra espécie de trabalho, a qualquer outra espécie de ação. O seu trabalho, por conseguinte, é uma forma de fuga da vida: da sua esposa, dos seus deveres sociais, de inumeráveis exigências, etc. E há o homem da outra categoria, o homem que, como a maioria de nós, é obrigado a fazer algo que detesta, e o faz com relutância. É o trabalhador de fabrica, o funcionário do banco, o advogado, etc.

Agora, que é que nos faz embotados? É o trabalho em si? Ou é a nossa resistência ao trabalho, ou o nosso empenho em evitar outros contactos? Compreendeis bem este ponto? Espero que eu o esteja expondo claramente. Isto é, o homem que ama o seu trabalho, está tão fechado nele, tão preso, que ele se torna uma devoção. Por conseguinte, o seu amor ao trabalho é uma fuga da vida. E o homem que resiste ao seu trabalho, que preferiria estar fazendo outra coisa, para esse há o conflito incessante da resistência àquilo que está fazendo. Nosso problema, pois, é: O trabalho torna a mente embotada? Ou o embotamento é produzido pela resistência ao trabalho, num dos casos, ou pelo uso do trabalho como meio de evitar os choques da vida, no outro caso? Isto é, a ação, o trabalho, torna a mente embotada, ou a mente se torna embotada por causa da fuga, do conflito, da resistência? É bem evidente que não é o trabalho, porém a resistência que torna a mente embotada. Se não opondes resistência e aceitais o trabalho, que acontece? O trabalho não vos embota, porque só uma parte da vossa mente fica ocupada com o trabalho que tendes de executar. O resto do vosso ser, o inconsciente, o oculto, fica ocupado com os pensamentos em que de fato tendes interesse. Logo não há conflito. Poderá isso parecer um tanto complexo; mas se examinardes com muita atenção, vereis que a mente se embota, não por causa do trabalho, mas por causa da resistência ao trabalho ou da resistência à vida. Digamos, por exemplo, que tenhais de executar um determinado serviço que levará umas cinco ou seis horas. Se dizeis “Que aborrecimento, que coisa horrível, preferiria fazer outra coisa qualquer” — o vosso espírito está evidentemente resistindo a esse trabalho. Uma parte da vossa mente está desejando que estivésseis fazendo outra coisa. Esta divisão produzida pela resistência, causa o embotamento, porque estais desperdiçando esforço, desejando que estivésseis fazendo outra coisa. Mas se não resistis e fazeis o que é realmente necessário, nesse caso dizeis: “Preciso ganhar o meu sustento, e hei de ganhá-lo corretamente”. Mas a profissão adequada não significa o exército, a polícia, ou a advocacia, — porque esses prosperam na discórdia, na desordem na astúcia, no subterfúgio, etc. Este é um problema bastante difícil, e talvez o examinemos mais tarde, se houver tempo.

Assim, se estais ocupado com um serviço que tendes de fazer para ganhar o vosso sustento, e se resistis a ele, a mente se embota, é claro; porque essa resistência é a mesma coisa que fazer funcionar um motor acionando ao mesmo tempo o freio. Que acontece ao pobre motor? O seu funcionamento se torna falho, não é verdade? Se já dirigistes automóvel, sabeis o que acontecerá se se fizer uso constante do freio: não só o freio se gasta, mas também o motor. É exatamente isso o que fazeis, quando resistis ao trabalho. Mas, se aceitais a tarefa que tendes de executar, e a executais o mais inteligente e o mais cabalmente possível, que acontece então? Porque já não estais resistindo, as outras camadas da vossa consciência continuarão ativas, independentemente do que estais fazendo; estais aplicando apenas a mente consciente ao trabalho, e a parte inconsciente, a parte oculta da mente está ocupada com outras coisas muito mais vitais e muito mais profundas. Embora estejais em presença do trabalho, o inconsciente funciona independente dele.    

Agora, se observais, que acontece realmente na vossa vida de cada dia? Digamos, por exemplo, que estejais interessado em achar Deus, em ter paz. Esse é o vosso interesse real, com o qual está ocupada tanto a vossa mente consciente como a inconsciente: encontrar a felicidade, encontrar a realidade, viver com retidão, com beleza, com lucidez. Mas tendes de ganhar o vosso sustento, porque não existe coisa tal como viver no isolamento: tudo o que existe, que é, está em relação. Estais interessado na paz, mas o vosso trabalho diário estorva esse  interesse, e por isso resistis a ele. Dizeis: “Quizera dispor de mais tempo para pensar, para meditar, para exercitar-me no violino, etc.” Quando assim procedeis, quando apenas resistis ao trabalho que tendes de executar, essa própria resistência é um desperdício de esforço, que torna a mente embotada; mas, se, por outro lado compreendeis que todos nós fazemos coisas que têm de ser feitas — escrever cartas, conversar, lavar o estábulo — e por conseguinte não resistis, mas dizeis: “tenho de fazer esse trabalho”, vós o fareis de bom grado e sem enfado. Não havendo resistência, vereis que, no momento em que terminardes o trabalho, a vossa mente estará em paz. Porque o inconsciente, as camadas mais profundas da mente estão interessadas na paz, vereis que a paz começará a surgir. Não há, pois, divisão entre a ação, que poderá ser rotina, que poderá ser desinteressante, e a vossa busca da realidade: as duas coisas são compatíveis quando não há resistência por parte da mente, quando a mente não se torna embotada por causa dessa resistência. É a resistência que cria a divisão entre a paz e a ação. A resistência se baseia numa idéia, e a resistência não pode produzir ação. É só a ação que liberta, e não a resistência ao trabalho.
            Importa, pois, compreender que a mente se torna embotada por causa da resistência, da condenação, da reprovação, da fuga. A mente não está embotada, quando não há resistência. Quando não há reprovação, nem condenação, ela está cheia de vitalidade, ativa. A resistência é mero isolamento, e a mente do homem que, consciente ou inconscientemente, está sempre procurando isolar-se, se torna em botada por causa dessa resistência.

Krishnamurti – Novo Acesso à Vida – 8 de agosto de 1948

Transformação Fundamental

Transformação Fundamental

Palestras - com perguntas e respostas - realizadas em Londres, Inglaterra  em 17 de junho  de 1955

EMBORA tenhamos numerosos problemas, e cada um deles pareça produzir muitos outros problemas, poderíamos verificar, agora, se não seria muito mais acertado não buscar a solução de problema algum. Nossa mente parece incapaz de ocupar-se com a vida como um todo; é bem evidente que nos ocupamos de nossos problemas fragmentariamente, separadamente, fora da perspectiva total. O mais importante, talvez, se temos problemas, não é buscarmos para eles uma solução imediata, mas termos a paciência de investigá-los profundamente, para vermos se podem ser resolvidos pelo exercício da vontade. Releva, a meu ver, não a maneira de resolver os problemas, porém, sim, a maneira como os consideramos. Porque, sem liberdade, de qualquer maneira que os consideremos, nossa ação será restrita; sem liberdade, qualquer solução - econômica, política, pessoal ou qualquer que seja - só acarretará mais sofrimentos e mais confusão. Por esta razão, considero muito importante averiguarmos o que é a verdadeira liberdade, descobrirmos por nós mesmos o que é a liberdade.
Só há uma liberdade: a liberdade religiosa; não existe outra liberdade. A liberdade que oferece o chamado "Governo de Bem-Estar" (Welfare State), a liberdade econômica, nacional, política, etc., que se nos dá, não é liberdade, em absoluto, e só pode levar a um caos maior e a piores sofrimentos - fato muito óbvio para qualquer observador atento. Penso, pois, que deveríamos aplicar nosso tempo, nossa energia e pensamento, inteiramente à investigação do que é "liberdade religiosa" - a descobrir se tal coisa existe realmente. Esta investigação - se desejamos levá-la a bom termo, sem nos deixarmos desviar por atrações de espécie alguma - exige muita penetração, energia e perseverança. Acho que merece a pena concentrar-nos, todos nós, neste problema: Que significa ser "religiosamente livre"? É possível libertar a mente - isto é, nossa própria mente, a mente individual - da tirania das igrejas, das crenças organizadas, dos dogmas, dos sistemas de filosofia, das várias práticas da ioga, e todas as preconcepções sobre o que seja a Realidade ou Deus, e, livres de tudo isso, descobrirmos por nós mesmos se existe "liberdade religiosa"? Porque, sem dúvida, só a liberdade religiosa pode oferecer, definitiva e fundamentalmente, a solução de todos os nossos problemas, tanto individuais como coletivos.
Isso, com efeito, significa: Pode a mente descondicionar-se? Porque, em última análise, nossa mente é resultado do tempo, da tradição, de uma vasta experiência - não só a experiência do presente, mas também a experiência coletiva do passado. A questão, pois, não é de como enobrecermos o nosso  condicionamento, como melhorá-lo - como está tentando fazer a maioria de nós - porém, antes, de libertarmos completamente o nosso espírito de todos os seus condicionamentos. A questão verdadeira, parece-me, não é de decidirmos a que religião pertencer, que sistema de filosofia adotar, que disciplinas praticar para alcançarmos a percepção de uma Realidade existente além dos limites da mente, porém, sim, de descobrirmos por nós mesmos, pela nossa compreensão individual, pela investigação própria e autoconhecimento, se a mente pode ser livre. Esta é a maior de todas as revoluções, a única revolução - a libertação da mente de todos os seus condicionamentos. Afinal de contas, para descobrir algo que seja eterno, descobrir se tal coisa existe, não deve a mente pensar em termos de tempo; não deve acumular o passado, visto que tal acumulação gera o tempo.
As próprias experiências que colhemos têm de ser postas fora, porque elas manufaturam, constroem o tempo. Nossa mente, sem dúvida, resulta do tempo, condicionada pelo passado, pelas inumeráveis experiências, lembranças que acumulamos e que nos emprestam continuidade. Assim sendo, pode-se ser, de fato, livre, religiosamente - no sentido mais profundo da palavra "religião"? Porque religião, é - bem de ver, não são ritos, dogmas, não é moral social, freqüentar a igreja todos os domingos, a prática da virtude, o bom comportamento, que nos levam à respeitabilidade. Nada disso é religião, por certo. Religião é muito mais do que isso, coisa muitíssimo diferente.
Se desejamos verificar o significado de ser "religiosamente livre", acho necessário seja compreendido, integralmente, o problema da vontade, do desejo, com seus alvos, atividades, propósitos, "projeções" inumeráveis - a armadilha em que a mente está cativa. Parece-me, pois, que os nossos problemas só poderão ser resolvidos em definitivo, se deixarmos "queimar-se" totalmente o processo da vontade - coisa que parecerá completamente estranha a um espírito ocidental, e mesmo à mentalidade oriental. Porque, ao fim de contas, esta suposta religião que geralmente aceitamos, está baseada essencialmente no processo do "vir a ser algo", de por fim alcançar um certo estado, que é projetado ou inventado, não é verdade? Podemos, em raros momentos, experimentar um "novo estado", mas, imediatamente, pomo-nos a persegui-lo - o que também implica o cultivo da vontade de ser, de ser algo - e nele estará o processo do tempo, não é verdade? Se a mente deseja alcançar algo além do tempo, além das limitações das experiências, baseadas essencialmente no condicionamento da ação, do pensamento, do sentimento; se desejamos alcançar algo além de tudo isso, sem dúvida é necessário que nossa mente, constituída que é de tantas atividades e desejos, finde, cesse as suas atividades. E isto, na verdade, significa: compreensão de todo o processo da mente condicionada. Afinal de contas, é bem óbvio, a mente condicionada, que se formou e moldou segundo a cultura de uma dada sociedade, não pode encontrar algo que se acha além de todo o pensar. E a compreensão que nos faz achar o que está além é revolução, - a verdadeira religião.
O que é significativo, portanto, não é que sejais cristão, budista ou hinduísta, um "seguidor", um homem que troca uma religião por outra para satisfazer sua particular vaidade, aceitando certas formas de rituais e abandonando as antigas - sabeis as sensações que se experimentam quando se assiste a uma cerimônia religiosa. Tudo isso, a meu ver, é prejudicial, completamente inútil, para a mente que deseja descobrir o verdadeiro. Mas o abandono desse caminho, por ação da vontade, só pode naturalmente gerar mais condicionamento, o que acho muito importante compreender. Estamos habituados a exercer esforço, visando a um resultado. E por isso que nos exercitamos; praticamos certas virtudes e lutamos por alcançar um certo padrão de moralidade, o que indica esforço, de nossa parte, para chegarmos a algum lugar, não é verdade?
Seria desejável refletirmos sobre isto, discuti-lo, investigá-lo juntos - investigar como libertar a mente de todo condicionamento; se ela pode ser descondicionada pela ação da vontade, pela análise de todos os processos de pensamento e suas respectivas reações - ou se existe uma maneira totalmente diferente de proceder, ou seja com um percebimento em que sejam "queimados" pela raiz todos os processos de pensamento. Todo pensar, obviamente, é condicionado; não existe "pensar livre" -- tal coisa não existe. O pensar, sendo produto de nosso condicionamento, nossa cultura, nosso clima, nosso fundo social, econômico, político, nunca pode ser livre. Os próprios livros que ledes, as próprias praxes que observais, têm suas bases no vosso próprio fundo (background); e todo pensar só pode provir desse mesmo fundo.
Assim, se pudermos estar vigilantes (poderemos apreciar mais adiante o que significa "estar vigilante") talvez possamos "descondicionar" a mente, sem o processo da vontade, sem a determinação de descondicioná-la. Porque determinação denota uma entidade que deseja, uma entidade que diz: "Tenho de descondicionar a minha mente". Essa própria entidade é produto do nosso desejo de alcançarmos um certo resultado; portanto, já existe um conflito. Mas, podemos estar cônscios de nosso condicionamento, simplesmente cônscios? Assim, não há conflito algum. Na chama desse percebimento, se o permitimos, podem consumir-se todos os nossos problemas.
No fundo, todos temos o sentimento de que existe alguma coisa além do nosso pensar, dos nossos insignificantes problemas e tribulações. Há, porventura, momentos em que "experimentamos" esse estado. Mas tais experiências, infelizmente, se tornam um obstáculo ao ulterior descobrimento de coisas mais importantes; pois nossa mente gosta de apegar-se a toda coisa que experimentamos. Tomando tal coisa pelo Real, lhe ficamos apegados; mas, justamente este apego impede o experimentar de coisa muito mais importante.
A questão, por conseguinte é: Pode a mente condicionada, olhar-se a si própria, perceber o seu condicionamento, sem fazer escolha, abstendo-se de comparações e de condenação, para ver se na chama desse percebimento não se consome, pela raiz, o problema, o pensamento, que a preocupam? Não há dúvida de que toda espécie de acumulação, de conhecimentos ou de experiência, toda espécie de ideal, toda "projeção" da mente, toda prática deliberada, para moldar a mente - o que ela deve ser e não deve ser - não há dúvida de que tudo isso está a paralisar o processo da investigação, do descobrimento. Se examinardes bem esta questão, se, refletirdes a fundo a seu respeito, vereis que a mente tem de estar livre de todo condicionamento, para que possa ter "liberdade religiosa". E é só nesta liberdade religiosa que todos os nossos problemas podem ser resolvidos.
Nossa investigação, por conseguinte, deve visar, não à solução de nossos problemas imediatos, mas, sim, a descobrir se a mente - não: só a mente consciente, mas também a inconsciente, a mente profunda, onde estão depositadas todas as tradições, lembranças, e herança racial - se a totalidade da mente pode ser posta de lado, abandonada. Acho que tal coisa só é possível, quando a mente é capaz de um estado de percebimento em que não haja exigência em nenhum sentido, nem pressão de espécie alguma - um estado de simples vigilância e percebimento. Penso ser uma das coisas mais difíceis o nos pormos assim vigilantes; porque o problema imediato, a solução imediata, nos está prendendo toda a atenção - e por isso são tão superficiais as nossas vidas! Ainda que recorramos a todos os analistas, leiamos todos os livros, adquiramos muito saber, freqüentemos as igrejas, rezemos, meditemos, pratiquemos muitas disciplinas, nossa vida, não obstante, é muito superficial, pois não sabemos penetrar lhe as profundezas. A meu ver a compreensão, o modo de penetração que nos levará às maiores profundidades, está no percebimento - no estarmos cônscios, simplesmente, dos nossos pensamentos e sentimentos, sem condenação e sem comparação - no simples observar. Se o experimentardes, vereis como isso é difícil; porque nossa educação, em todos os seus aspectos, só nos prepara para condenar, aprovar, comparar.
Nessas condições, parece-me que o nosso problema - que na realidade independe do tempo - é o de descobrirmos por nós mesmos, "experimentarmos" diretamente o que significa libertar a mente de todos os condicionamentos. É relativamente fácil livrar-se do nacionalismo, das qualidades raciais hereditárias, de certas crenças e dogmas, não pertencer a nenhuma igreja, ou religião - isso é relativamente fácil, para todo aquele que refletiu seriamente sobre estes assuntos; mas, é muito mais difícil ir mais longe do que isso, ultrapassar estes limites. Pensamos ter feito muito quando sacudimos de nós algumas das camadas superficiais de nossa cultura ocidental ou oriental. Mas o penetrarmos mais além, sem ilusões, sem enganarmos a nós mesmos, - isso é extremamente difícil. A maioria de nós nos falta para tal a necessária energia. Não me refiro à energia que se cria pela abstinência, pela renúncia, pelo ascetismo, pelo controle - pois a energia oriunda dessas coisas é de uma qualidade falsificada, já que desfigura a observação; refiro-me àquela energia que nasce quando a mente já não está buscando coisa alguma, já não sente necessidade de buscar, nem de descobrir, nem de "experimentar", e, portanto, está verdadeiramente tranqüila. Só nesse estado a mente é capaz de descobrimento; porque só a mente tranqüila está apta a receber algo que não é "projeção" dela própria. A mente tranqüila é livre; é a mente religiosa.
Podemos considerar realmente este assunto, não como um grupo, "experimentando" coletivamente, o que, aliás, é relativamente fácil - mas podemos, como indivíduos, investigar realmente e descobrir por nós mesmos até que grau e até que profundidade estamos condicionados? E podemos estar cônscios desse condicionamento, sem lhe opormos nenhuma reação, sem condená-lo, sem procurarmos alterá-lo, sem substituirmos o antigo condicionamento por um condicionamento novo - estar cônscios com tanta simplicidade e tão profundamente, que o próprio "processo" de condicionamento - que, afinal, é simplesmente o desejo de estar seguro, o desejo de permanência - seja "queimado" pela raiz? Podemos descobrir isso por nós mesmos - e não porque um outro falou a seu respeito - percebê-lo diretamente, de modo que a própria raiz, o próprio desejo de segurança, permanência, seja de todo consumido? É esse desejo de permanência, quer no futuro quer no passado, esse apego à experiência acumulada, - que nos impele à busca da segurança. E esse desejo não pode ser "queimado", consumir-se de todo? Porque é ele que cria condicionamento. Esse desejo que quase todos ternos, de saber, buscando nesse saber nossa própria segurança, esse desejo de experiência, para nos tornarmos mais fortes, não se pode acabar definitivamente - não pela volição, mas fazendo-o consumir-se na chama do percebimento, de modo que a mente fique livre de todos os seus desejos, e possa então surgir aquilo que é Eterno?
Penso ser esta a verdadeira revolução - e não a comunista ou qualquer outra forma de revolução. Estas não resolvem os nossos problemas; pelo contrário, aumentam-nos, multiplicando as nossas tribulações - o que, mais uma vez, é um fato bem óbvio. Sem dúvida, a única revolução verdadeira é a que liberta a mente de seu condicionamento e, por conseguinte, da sociedade. Não é, pois, a mera reforma da sociedade. O homem que está libertado da sociedade, uma vez que está livre de condicionamento, agirá pela sua maneira própria, e sua ação, por sua vez, influirá na sociedade. Nosso problema, por conseguinte, não é a reformação - como melhorar a sociedade, como ter um "Estado de Bem-Estar" (Welfare State) comunista, socialista, ou coisa parecida. Nosso problema não se refere à revolução econômica ou política, nem à paz pelo terror. Para um homem verdadeiramente sério, estas coisas não constituem problemas. O seu problema real é o de investigar se a mente pode libertar-se, de todo, de seu condicionamento e, talvez, nesta investigação, neste silêncio extraordinário, descobrir aquilo que ultrapassa todas as medidas.
Tenho aqui várias perguntas, e antes de a elas responder, acho importante verificar o que é que entendemos por "um problema". Só existe algum problema quando a mente está ocupada - não achais? Tende a bondade de escutar e permiti-me sugerir-vos que não salteis a conclusões, uma vez que estamos tentando investigar juntos. Quando a mente está ocupada, seja com Deus, seja com assuntos culinários, com uma pessoa, uma idéia, uma virtude - sua ocupação, inevitavelmente, tem de criar problemas. Se estou ocupado com o descobrimento de Deus ou da Verdade, esta minha ocupação se torna um problema, porque me ponho então a indagar, a mendigar, em busca do método mais eficaz, etc. A verdadeira questão, por conseguinte, não se relaciona com o problema em si, porém, sim, precisamos investigar porque anda a mente sempre ocupada, porque busca a mente ocupações. Não me refiro às atividades diárias, dos negócios, etc., mas à ocupação psicológica da mente - a qual tem relação com a nossa vida de cada dia. Pouco importa com, o que estejamos ocupados: se a respeito de Deus, da Verdade, do amor, do sexo, de assuntos culinários - tudo é a mesma coisa; não há "ocupações nobres". A mente busca ocupações, precisa estar ocupada com alguma coisa, tem horror a se ver não ocupada. Verificai, numa ocasião qualquer, quanto vos ocupam os vossos problemas e o que sucederia se não estivésseis tão ocupados: descobriríeis logo o horror que a mente tem de ver-se sem nenhuma ocupação. Nossa cultura, nossa educação, em todos os seus aspectos, nos ensinam que a mente deve estar ocupada; no entanto, acho que a própria ocupação cria o problema. Isto não significa que não existem problemas; há problemas; mas eu acho que a ocupação com o problema é que nos impede de compreendê-lo. É realmente interessante observar a mente, observar a nossa própria mente e verificar como está sempre ocupada com uma coisa ou com outra; nunca se acha um momento em que ela esteja quieta, desocupada, vazia, nunca se encontra um espaço sem limites.
Como andamos sempre tão ocupados, os nossos problemas aumentam sem cessar. E a mera solução de um dado problema, sem se compreender por inteiro o processo da ocupação mental, só tem o efeito de criar outros problemas. Assim sendo, não haverá possibilidade de compreendermos esta peculiar insistência da mente em estar ocupada, seja com idéias, especulações, conhecimentos, ilusões, estudos, seja com sua própria virtude e seus próprios temores? Estar livre de tudo isso, ter uma mente não ocupada, é muito difícil, porquanto significa, com efeito, a cessação de todas estas reações da memória, que chamamos "pensar".
PERGUNTA: Sou muito "apegado", e sinto ser muito importante cultivar o desapego. Como alcançarei esse sentimento de, liberdade do apego?
KRISHNAMURTI: Nosso problema é o desapego? Ou será o apego? Ser "apegado" causa sofrimentos, e por conseguinte desejamos tornar-nos desapegados. Se pudermos considerar o inteiro processo do apego, não superficialmente apenas, mas compreendendo o seu verdadeiro significado, penetrando-o até o fundo, então é bem possível que se apresente algo muito diferente daquilo que chamamos "desapego".
Porque somos tão apegados a alguma coisa: nossos haveres, pessoas, idéias, crenças? Bem sabeis quantas formas de apego existem e a quantas coisas vivemos apegados. Porque somos tão apegados? Não há um sentimento de temor, se não estamos apegados a alguma coisa? - se não estou apegado a meu amigo, a uma idéia, uma experiência já acabada, um filho, irmão, mãe, uma esposa morta? Não nos consideramos desleais, desamorosos, se não somos apegados? E, não há também, em nosso apego, um medo estranho de não sermos alguma coisa? O problema é este, e não como cultivar o desapego. Se cultivo o desapego, este próprio cultivo se torna um problema.
Vede, por favor: eu sou apegado; meu apego resulta de temor, de variadas formas de solidão, de vazio, etc. Estou cônscio disso e conheço as penas que o apego me impõe; conseqüentemente procuro cultivar o desapego. E, assim, a minha mente se mantém ocupada com o desapego e sobre como alcançar tal estado; e esse processo mesmo se torna um problema, não é verdade? Desejo conquistar o desapego e, assim, a mente, ocupando-se com o resultado, com uma idéia chamada "desapego", cria o problema da consecução do "desapego"; nasce então o conflito - sou apegado e devo ser desapegado - e esse conflito gera sofrimento. E vem daí uma luta constante para se alcançar um certo estado isento de sofrimento e de temores. Mas, se sou capaz de encarar o apego, estar cônscio dele, sem perguntar como libertar-me da penosa luta para compreender tudo o que o apego implica - se sou capaz de estar simplesmente cônscio dele, como se está cônscio do céu - vendo-o nublado ou escuro, carregado de chuva ou todo azul - não há então problema algum e a mente não está mais ocupada com a questão do apego ou com seu oposto, o desapego. Quando a mente está assim vigilante, cônscia, pode então perceber o inteiro significado do apego. Mas, não se pode discernir todo o significado interior do apego, se há qualquer forma de condenação, comparação, julgamento, avaliação.
Se "experimentardes" o que estou dizendo, vereis claramente a sua significação. O mero cultivar do desapego torna-se uma coisa por demais superficial. Suponhamos que fiqueis desapegados - e daí? Mas, quando há percebimento, pode-se ver que onde há apego, não há amor; onde há apego, há desejo de permanência, de segurança, de continuidade pessoal - o que não significa que devamos aspirar à autodestruição. E, percebendo-se isso, o problema do apego se torna extraordinariamente significativo e amplo. Se nos limitamos a fugir do apego, por causar-nos tanto sofrimento, essa fuga só pode levar-nos a um amor superficial, um pensar superficial. E a maioria dos que estamos praticando a virtude - a virtude do desapego, da não-avidez, da não-violencia - levamos na realidade uma vida superficial - vida de idéias, de palavras.
Se estamos bem cônscios do problema do apego, em todos os seus aspectos, começaremos a descobrir as suas extraordinárias profundezas, o quanto a mente está apegada à experiência de ontem, com a dor ou o prazer que a acompanharam, o quanto está presa a essa experiência. Não será possível ficarmos livres da experiência, tanto de prazer como de dor, enquanto não estivermos verdadeiramente vigilantes. Nesta vigilância ou percebimento em que não há escolha nem reação alguma, a mente pode descer a grandes profundidades. A mera prática de qualquer virtude só pode conduzir à respeitabilidade - que é o que a maioria das pessoas deseja, pois a respeitabilidade identifica-nos com a sociedade. Todos desejamos ser reconhecidos como "algo" - grande ou pequeno, isto ou aquilo; e a esta idéia temos apego. Podemos desejar desapegar-nos de pessoas, porque tal apego nos causa dor, ao passo que a idéia a que estamos apegados não nos é dolorosa. Mas, para compreendermos verdadeiramente o problema do apego - apego à tradição, à nacionalidade, aos costumes, ao hábito, ao conhecimento, à opinião, a um Salvador, a toda sorte de crenças e não-crenças, não devemos contentar-nos com arranhar a superfície, nem pensar termos compreendido o problema do apego pelo fato de estarmos cultivando o desapego. Mas, se, ao contrário, não procurarmos cultivar o desapego - cultivo que, apenas, se torna mais um problema - se pudermos, simplesmente, observar com toda a clareza, o apego, seremos então, talvez, capazes de descer a uma grande profundidade e descobrir algo completamente diferente, algo que não é apego nem desapego.
PERGUNTA : Estudei muitos sistemas de filosofia e as doutrinas dos grandes guias religiosos. Tendes algo melhor para oferecer, do que a que já sabemos?
KRISHNAMURTI: Pergunto-me a mim mesmo porque é que estudais, porque ledes filosofia, porque ledes os ditos dos guias religiosos. Pensais que o saber que tendes adquirido dos instrutores e dos livros, vos levará a alguma parte? Ele poderá ser útil, numa discussão - para "deitardes erudição", mostrardes quanto sois perspicaz. Mas o saber acumulado - afora no mundo científico - pode conduzir um homem, a vós ou a mim, ao descobrimento do que é real, do que é verdadeiro, Deus, o Eterno? - descobrimento sem o qual a nossa vida muito pouco significa? Sem dúvida, para se achar o Eterno, temos de largar todo o nosso saber, não é verdade? Tudo o que disse Buda, Cristo, ou outro qualquer - tudo isso não tem de ser posto de lado? Senão, estareis meramente a perseguir vossas próprias "projeções" ou a "projeção" da vossa igreja; estareis, na verdade, reagindo ao vosso próprio condicionamento.
Ora, vós tendes de deixar de ser cristãos, hinduístas, budistas ou praticantes da ioga - deveis deixar tudo isso completamente para que "o que está além" (caso exista) possa manifestar-se. Se dizemos, simplesmente, que além existe algo, e aceitamos este Algo, e esperamos alcançá-lo - com isso nos mostramos muito superficiais. Mas, podemos empreender uma jornada sem nada sabermos, sem apoio nenhum, sem sermos cristãos, budistas, hinduístas - que são simples rótulos e denotam uma mente condicionada? O pormos de parte tudo o que sabemos - eis o único problema, e pouco importa que eu tenha "algo melhor para oferecer". Porque, sem dúvida, um homem deve estar só - não isolado, não "sozinho" no saber, na experiência, porque todo saber e toda experiência são obstáculos ao descobrimento do real. A mente deve estar livre de todo condicionamento, tem de estar só, para descobrir. Quanto mais uma pessoa observa uma certa prática, quanto mais acumula, quanto mais disciplina, molda, torce, luta, tanto menos compreenderá o que é.


Participe do nosso grupo no Facebook

Participe do nosso grupo no Facebook
Grupo Jiddu Krishnamurti
Related Posts with Thumbnails

Vídeos para nossa luz interior

This div will be replaced